A prancha enquanto enigma

Só fui descobrir anos depois, mas a minha primeira prancha de surf era tão ruim quanto linda. Me lembro que dentre tantas na surf shop, foi ela, e apenas ela, que me deixou hipnotizado. Não queria saber de mais nenhuma. Eu queria muito aquela branca com borda vermelha. Com uma sugestiva pintura tradicional, aquela Hot Buttered era pra mim uma tremenda Ferrari, e muito me ajudou no primeiro ano de surf, até ficar inchada, amarelada e com uma enorme trinca no meio. O fato de ela ser o maior toco e muito parecida com uma tampa de caixão não fazia a menor diferença para mim. Eu achava-a linda. E isso bastava.

Os anos foram se passando, virei adolescente, fiz amigos surfistas, tive que pensar em pranchas, e comecei a me relacionar com shapers. E essa era a parte mais difícil da minha vida de surfista. Pegar tubo em pé? Mole. Batidão na cara? Tranqüilo. Lidar com o crowd de Pipeline? Sem problemas. Agora, entender de prancha sempre foi o mistério dos mistérios. Não um qualquer, mas o maior enigma do surf pra mim.

Nunca entendi nada disso. Invejava, secretamente, parceiros que ficavam horas discutindo sobre o futuro do rocker, por exemplo. Rocker pra mim era Mick Jagger, ora bolas. Espessuras, bicos, rabetas, edges (guitarrista do U2?), curva de fundos, melhores blocos para shapear ─ tudo grego. Por mais que eu me esforçasse, esse universo de medidas e curvaturas não entrava na minha cabeça nem por um decreto. Fiquei anos fingindo que entendia, driblando situações embaraçosas, enganando aqueles que sabiam ainda menos do que eu e pediam minha opinião sobre suas pranchas. Na real, eu tinha era vergonha de ser surfista e de não entender do assunto. Achava um mico.

Foi só outro dia que consegui tirar esse peso das costas. Li na revista que o Roger Waters, baixista e principal compositor do Pink Floyd, tinha complexo de inferioridade porque não sabia ler música e que só resolveu esse problema quando, recentemente, Eric Clapton lhe disse: “Você compôs muitas das músicas mais importantes do século XX e é um grande músico. Nunca deixe ninguém lhe dizer o contrário”. Caramba, como pode um cara como o Roger Waters, responsável pela obra-prima Dark Side of the Moon, entre tantas outras, que vendeu milhões de discos e é incensado por meio mundo, ser inseguro como músico? E se ele que é o Roger Waters pode, eu que não sou ninguém também posso com essa história de prancha.

Mas o melhor foi que, ao aceitar essa minha deficiência, eu finalmente compreendi que não tenho que entender de prancha coisíssima nenhuma. Assim como um músico não precisa saber como funciona seu instrumento. Só precisa tocar. Eu também, só preciso surfar. Quem tem que entender de prancha são os shapers. Eles é que têm a obrigação de me decifrar, entender o meu surf, a minha necessidade, e fazer a prancha certa. Eu preciso é de um shaper que me salve do embaraço de ter que ficar explicando como eu quero a prancha. Chega a ser ridículo, é um tal de: “... Ah... faz... uma solta e... rápida... e que seja... segura e não dê de borda... e que tenha boa remada... e que segure no tubo... e que... ah... faz uma vermelhinha boa e não me enche!”.