História de Surfista


Saindo de casa em Ilhabela, rumo ao fervor da cidade de São Paulo, já, como sempre, atrasado e com certeza esquecendo alguma coisa que só iria me dar conta no meio do caminho, senti a brisa descendo do lado da montanha, não quente, mas menos fria do que o normal para o inverno. O vento tinha virado para leste. A próxima balsa iria zarpar em dez minutos, e se eu não quisesse esperar mais meia hora por outra depois daquela, não podia vacilar, era entrar na caminhonete e acelerar. Mas agora eu queria surfar, o vento tinha virado minha cabeça também. Calculei, uma horinha na água, pegando pelo menos uma onda a cada dez minutos. Seriam seis no mínimo. Mais um chorinho na hora de sair e, quem sabe, eu completasse oito. Se o mar estivesse muito bom mesmo, inventava uma prorrogação e fechava com dez, quantia bem suficiente para chegar em Sampa mansinho, com um sorriso maroto na cara e um brilho de felicidade no olhar. Deixei o carro ligado e corri para o suporte das pranchas na garagem, retirando a que estava mais fácil. Voei até o varal no quintal e peguei a roupa de borracha, ainda molhada do dia anterior, e a toalha ao lado, joguei tudo na caçamba e parti. Cinco minutos para a balsa, quatro, três, dois, um. Ufa! Em cima da hora. Soou o apito e os cansados motores a diesel foram postos em movimento. Primeiro dei uma checada em Guaecá, da estrada mesmo, pequeno mais indicando potencial para Maresias. Em Maresias, dei uma olhada no mar passando pela pracinha e resolvi arriscar no Bar do Meio. Ninguém na água e uma vala bem delineada produzindo direitas e esquerdas de um metro mais ou menos. Bingo! Diversão garantida. Visto a roupa de borracha, acabo com um restinho de parafina, escondo a chave entre os escombros de um dos muros tragados pela última ressaca. Pulo no mar e saio remando pelo canal. Calculo mal, remo pra dentro do pico antes de ter realmente passado a linda das ondas e tomo uma série na cabeça, retardando um pouco minha chegada ao outside. As ondas estão lisinhas e fortes, e enquanto desvio de volta em direção ao canal, lamento mentalmente não ter pegado uma delas logo de cara. E vou lamentar ainda muito mais. Chego ao outside e sento na prancha olhando pro horizonte. Não, não acredito no que estou vendo, no que estou sentindo. Em questão de segundos entra um vendaval de sul, enchendo o mar de carneirinhos, amassando as ondas, dobrando os coqueiros da praia, arrancando os guarda-sóis da areia. Saio sem ter surfado sequer uma mísera marola, quanto mais dez, oito ou seis boas ondas, como havia imaginado. Ainda escuto um figura descrever, amarradão enquanto se enxuga, como o mar estava de gala meia hora atrás: "Rolavam até uns tubinhos". No início da serra entre Maresias e Boiçucanga, dou de cara com uma viatura do departamento de trânsito de São Sebastião. Estou atendendo uma chamada no celular e fico na dúvida se percebem. Paro no acostamento para continuar falando e sou abordado por dois sujeitos que vinham empurrando uma bike ladeira acima: "Pô senhor, dá uma carona aí, tamu indu trabaiá im uma obra im Boiçucanga". Fiquei meio cabreiro, calculando o risco, mas acabei orientando os caras pra se ajeitarem com a bicicleta na caçamba sem estragar minha prancha. Fomos trocando uma idéia pela janelinha e o mais falante dos dois me contando que já tinham tomado várias logo cedo que era pra "fica du jeitu". Não paravam de agradecer, já que eu os salvara de subir uma serra a pé debaixo do sol e certamente de se acidentar feio tentando dropar o asfalto ingrime do outro lado, os dois, zoados, na mesma bike. Agradecem mais uma vez na hora que os deixo do outro lado, na frente do posto da PM. "Fica na moral", ouço o mais calado resmungar pro parceiro agitado ao se afastarem. Duas hora e pouco depois estou no meu destino. Entro no escritório, dou um "oi" pra geral, bato um pouco de papo e vou pra minha mesa. Ligo o computador e busco no Internet Explores um dos meus sites favoritos de previsão de ondas. Da minha sala não sei dizer de onde o vento está vindo. Mas consigo saber para onde ele está indo. Daqui a dois dias vai virar pra leste de novo, e a ondulação que o vento sul trouxe vai começar a baixar, mas ainda apresentando um bom tamanho. Pronto, o vento já virou minha cabeça de novo. Quem sabe na próxima tentativa eu tenha mais sorte, ainda que a verdadeira sorte, aquela que temos que agradecer todo dia, esteja em poder de continuar tentando.



P.S.: Dois dias depois, voltei e peguei 14 ondas em 1h e 45min. Uma a cada sete minutos e meio.