Combinamos de ir surfar. Estou esperando por Bruce Irons no saguão do meu hotel, na ilha do Kauai, segurando uma sacola de plástico com minha bermuda e meu colete. Sem prancha — pretendo pegar uma emprestada do Bruce. Quando a picape gigante encosta, não consigo ver quem está ao volante. Caminho até a porta do passageiro, o capô fica acima da minha cabeça. O vidro desliza para baixo. É ele.
“Você gosta de armas?”, Bruce pergunta. Antes que eu possa responder ele já está na próxima frase. Bruce fala do mesmo jeito que surfa — rápido e despreocupado. Fico imaginando se o pediatra dele sugeriu que tomasse Ritalina (remédio para hiperativos). “Vamos dar uns tiros!”. Ele parece meio frenético, enquanto subo na picape. “A galera vai fazer um tiro ao alvo no sítio. Aqui, dá uma olhada nisso!”. Depois de remexer uma mala no banco de trás, Bruce pega o que parece ser um rifle AK-47, do tipo usado por pessoas normais como, bem... o Rambo. Estou no carro há 30 segundos e a coisa já chegou a esse ponto.
Fui aconselhado a não vir. Eu já irritei muita gente. Pessoas da indústria do surf, com feições amedrontadas, me alertaram: “Você não pode ir ao Hawaii, sabe disso, não é?”. Falaram como se fossem médicos ou especialistas passando um prognóstico ruim. Editores íntegros sussurraram para mim que certos surfistas profissionais havaianos planejavam queimar minha casa. Literalmente — sem metáforas nem alusão à música do Talking Heads (“Burning down the house”). Um amigo até levantou a hipótese de que este trabalho era uma armadilha.
Mesmo assim, caminho por um campo gramado e observo um grupo de havaianos grandes e mal-encarados com uma quantidade imensa de bebidas e armas de fogo. No meio deles está Bruce Irons, carregando uma semi-automática enquanto eu fico ali parado com as mãos nos bolsos. Kamalei Alexander me olha meio desconfiado depois de espatifar um dos pratos voadores tranquilamente com sua escopeta. Minha segurança está ameaçada por um número de variáveis completamente fora do meu controle, incluindo (mas não somente):
1. Os conhecimentos de computação e a consciência cultural daqueles havaianos. Será que leram meus textos?
2. O quão a sério Bruce leva este perfil sobre ele. Será que liga para publicidade positiva e/ou queixas criminais?
3. A tolerância do “Wolfpack” ao humor auto-depreciativo. Será que eles curtem alusões à história e à literatura dos Estados Unidos? Será que gostarão se eu fizer uma piada sobre ser atingido por uma bala perdida durante a brincadeira da tarde?
São probabilidades interessantes para apostar sua vida, ainda mais se forem julgadas por uns cinco brutamontes segurando armas carregadas, acompanhados por um loirinho arrogante que fala pelos cotovelos, é uma lenda do surf e segura uma metralhadora israelense.
ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ
Assistindo a The Bruce Movie no avião para o Kauai, fiquei impressionado com a rapidez com que uma era se mistura a outra. O filme tem apenas seis anos, mas documentou um surf de outro período. Aéreos insanos, drops atrasados, rasgadas impecáveis e tubos de tirar o fôlego, tudo isso transbordando uma espontânea masculinidade. O aéreo de frontside de Bruce foi uma referência e deu origem à Batalha espacial apresentada no recente Modern Collective. Mas hoje a atuação de Bruce parece ultrapassada, por não possuir os complementos culturais de 2010 — os grabs irritantemente perfeitos, os giros invertidos, os cortes de cabelo engraçadinhos e a auto-ajuda estilo emo.
É sensato concluir que nunca mais o melhor freesurfer do mundo vai vencer o Eddie Aikau e o Pipe Masters, como fez Bruce, mostrando que era bom de tubo, de surf performance e também nas ondas grandes. São habilidades muito distintas. Mick Fanning jamais vai ganhar o Eddie. Dane Reynolds nunca nem será convidado, e provavelmente nem liga pra isso. Mas ele é o melhor freesurfer do mundo, e ele e outros de sua geração podem fazer coisas que Bruce não pode.
“Comecei a aceitar agora que não sou mais o jovem destaque”, Bruce me disse uma noite. “Isso é algo difícil. Não estou no mesmo nível do Dane. Algumas das manobras e truques que ele manda eu nem consigo entender direito. Quebraria meus dentes no joelho se tentasse agarrar as bordas num aéreo. Mas vou descer uma onda maior, voarei mais alto e pegarei qualquer onda que eles pegarem — ficarei mais lá dentro e vamos ver quem se dá melhor”.
Bruce pertence a uma geração anterior, para a qual o surf era um ato de bravura e não um projeto de arte. “Por aqui, com os meus amigos, se você for fraco eles vão te engolir vivo”, Bruce me disse mais tarde. “O mesmo acontece com o meu irmão. Você não pode demonstrar nenhum sinal de fraqueza pra ele”. Mas as crianças de hoje se banham em fraqueza. Elas foram criadas para idolatrar nerds como o do filme Napoleon Dynamite em vez do Rambo. Bruce sabe disso. “Dane é um ótimo surfista, mas está pouco se lixando em remar até Backdoor ou Pipeline e pegar um tubo animal. Ele prefere ficar no Ehukai e mandar um aéreo monstruoso. É isso que eu gosto nele. E a molecada adora ver a galera mandando aéreos irados”.
Eles podem adorar agora, mas o freesurf envelhece. O que Dane faz hoje vai parecer velho daqui a dez anos, do mesmo jeito que The Bruce Movie me deixou mais nostálgico do que admirado. Mas o público não se esquece de vitórias em campeonatos. Apesar de rotulado como “freesurfer”, Bruce ironicamente conquistou algumas vitórias importantes e será lembrado por elas. Mas não tem um título mundial. Aliás, o Circuito Mundial indiscutivelmente sugou as energias de Bruce.
Agora, o mundo do surf, guiado por comentários anônimos na internet, parece disposto a descartar Bruce Irons como se ele fosse um pensamento ultrapassado — outro herói descartável. Por quê? Até onde sei, Bruce cometeu apenas um erro de estratégia: permaneceu vivo. Ele poderia ter sido o James Dean dos surfistas se sofresse um acidente de moto. Poderia ter sido o nosso Hendrix se tivesse sufocado no próprio vômito depois de ganhar o Eddie. Quando estou ali, parado em um sítio no Kauai, enquanto Bruce põe o rifle de lado e carrega a escopeta, tudo fica claro como o dia: o surf não tem o seu Kurt Cobain porque Bruce nunca pôs a arma na própria boca. Ele ofendeu a todos nós ao encontrar a felicidade, crescer, se estabelecer... Continuar vivo.
ESTRELAS PROTEGIDAS
Eu não queria vir até o Kauai. Tinha medo de que entrevistar Bruce não revelaria nenhuma verdade, temia que fosse o mesmo que perguntar a um cachorro como é correr atrás de uma bola de tênis. A verdade está nas ações. Além disso, revistas não querem a verdade — querem conteúdo que chame a atenção. E era isso que me preocupava.
Bruce Irons vende bermudas. Ele está em um negócio diferente do meu. Mas ele não é o que você pensa dele. Bruce ainda é o surfista de antes. Mas está mais interessado em ser pai. Marido. Caçador. Pescador. Golfista. Jogador de videogame. Um o quê?
“Sou viciado em videogame”, Bruce me diz na minha última manhã no Kauai. “Joga World of Warcraft?”, pergunto.
“Porra nenhuma!”, ele grita. “Sou nerd, mas nem tanto. Não jogo esse. Provavelmente ficaria fissurado nele. Mas o outro jogo... Call of Duty, com certeza. Jogo online e luto contra a molecada. E jogo com vários de meus amigos”.
Naquele momento, eu ri de Bruce Irons.
E Bruce não liga de rirem dele. “Jogo online, grito e xingo. A polícia já veio umas três vezes à minha casa. Eles acharam que eu estava batendo na minha mulher”.
Estou atordoado. “Eles vieram bem tarde nas três vezes. Não estou batendo na minha mulher, só estou jogando videogame. Mas em uma das vezes o papo foi: ‘As reclamações dizem que está havendo violência doméstica nesta casa’. Tive que falar para minha mulher descer. Cara, ela estava grávida, só de calcinha e sutiã... ‘Eles acham que estou batendo em você’. E ela: ‘Não’. Por isso tive que pegar mais leve com os games”.
Nossos heróis modernos do surf enfrentam desafios diferentes. Eles não vivem mais em cabanas no North Shore como seus pais ou avôs, em busca de uns trocados para viver e de uma companhia feminina. Mas eles também têm que se esforçar.
O domínio das tarefas do dia a dia normalmente já dá trabalho. Eles são o contrário das mães modernas que são multitarefa e ainda têm uma carreira. Para os surfistas profissionais, saber usar celulares, computadores e até mesmo relógios não é um dom. No pouco tempo que estive com Bruce, fui seu consultor de tecnologia ocasional, ajudando ele a carregar a bateria do seu iPhone, checar seu e-mail, passar vídeos online e até mesmo achar um número de série na longarina de uma prancha quebrada.
Mas a incompetência de Bruce é menos irritante que a ignorância de muitos jovens profissionais. Não sei por que, mas você tem vontade de ajudar Bruce em vez de chamá-lo de retardado. Ele é mesmo um “camarada”, um “irmão”. Seus velhos amigos gostam dele. O Occy gosta dele, o Parko também. Eu não esperava gostar, mas ele é inescapavelmente uma pessoa “gostável”. A inteligência social de Bruce pavimentou seu caminho para o sucesso e o livrou de ter de navegar nas minúcias da vida moderna. Bruce se importa com seus amigos, e ele sempre está cercado de amigos que o protegem.
“Eu ia todos os dias para a escola sem nada, nenhum livro ou mochila”, ele conta. “Pegava uma folha e uma caneta emprestados de uma garota todos os dias... e depois, você sabe como é, trocava um óculos escuro pelo trabalho com um primo inteligente”.
Era uma época anterior à dos garotos que estudam em casa, antes de eles ganharem mais dinheiro que seus advogados. “Eu não tinha orientação dos meus pais quando era criança. Não tinha hora de dormir e saia com meus amigos direto, mas sempre estava no ponto de ônibus para ir à escola, todas as manhãs. Ele nos pegava às 6h55 e entrávamos na escola às 7h50. Passei com notas D e C, mas passei. Minha professora me falou um dia: ‘Você não vai poder comer sua prancha. O surf não vai te alimentar’. Piranha... estou comendo minha prancha agora”.
No ônibus, Bruce era protegido por seus amigos havaianos. “Cresci junto com vários amigos nativos. Sempre os vi mexendo com outros brancos, mas eu me via como um deles. Sei que não sou havaiano, sou um haole ou algo assim. Mas e daí? Ao crescer aqui, fui protegido pelos havaianos. Esses caras são como meus irmãos”.
Agora, quem o protege é Blair Marlin, seu empresário. Antes de Marlin, quem cuidava dos negócios de Bruce eram seus pais. Blair tenta garantir que seus clientes recebam o que merecem e sejam apresentados adequadamente na mídia. Apesar de sair do Circuito Mundial, Bruce me diz que “ganha mais agora por causa do novo empresário”.
Blair também é o empresário de Andy, e a pessoa responsável por guiar os irmãos Irons pelo período recente meio obscuro de mudanças e desafios pessoais. Blair se encontra conosco no Kauai para ajudar com a entrevista.
A MESADA
Andy não está no Kauai, mas sua influência está por todos os lados. Quando pergunto a Bruce sobre a lendária rivalidade com o irmão, ele diz: “É bem pior do que as pessoas imaginam... pensam que é algo divertido, mas é sério pra caralho. Chegamos a sair na mão. Repare na foto do pódio do Eddie Aikau. Estou com um olho roxo. Brigamos por alguma coisa... no pôquer. Se não fosse aquilo, provavelmente eu não ganharia o Eddie. Andy estava pegando umas bombas gigantes e estava no caminho da vitória. E eu gritava e gritava o máximo que meus pulmões permitiam... queria muito ganhar dele. As ondas estavam absurdas, e o que me fez pegá-las foi isso, eu estava com raiva e puto da vida”.
Andy sempre precisava ser o melhor. A competitividade dele, Andy contra o mundo, atraiu Bruce para o mesmo nível. “Andy é uma máquina de competir”, Bruce explica meio perplexo. “Não sou tão competitivo assim, apenas com ele”.
Esta é a resposta para a charada que é Bruce Irons. Como você se torna o melhor sem se importar? Outros ícones fingiram não se importar, Curren, Slater e agora Dane. Mas em geral é só fachada. Você não pode ser tão bom sem se importar. É difícil desistir para esses heróis. Mas Bruce realmente não liga. Ele desistiu. E mal parece saber que deixou um legado. A única pessoa que ele tinha que vencer era o seu irmão. E agora que Andy não está mais no topo, Bruce não tem mais motivação para continuar.
Por isso ele tem ficado fora do radar, se mantendo perto de casa. E ignorando o fato de que, em 2010, até Bruce Irons precisará se mexer. Pessoas da indústria, incluindo o empresário dele, já perceberam. “Eu falo para ele e para o irmão dele a mesma coisa”, Blair diz para nós. “Estamos em recessão, as coisas mudaram, você só é bom para essas companhias pelo que fez ontem”.
Digo a Bruce que as pessoas percebem que ele não está se dedicando à carreira. Me sinto como um conselheiro, um guia.
“É verdade”, ele suspira. “Faço a mesma coisa que fazia a cinco anos atrás. Fiquei acomodado. Mas me casei, tive uma filha, um grande amigo morreu... desencanei do surf há um ano e meio e nem pensei no assunto. Ir surfar era um trabalho, e na minha cabeça era meio ‘Que merda, odeio surfar e chega, parei. O que vou fazer agora?’. Eu não estava feliz e aquilo era algo difícil. Mas agora estou de novo fissurado para surfar, e ainda quero provar coisas para mim mesmo, viajar, pegar boas ondas”.
Mas será que é tarde demais? Tentando atiçar alguma memória perdida, leio para Bruce uma frase de Kai Garcia, de 2007. “Você tem uns dez anos, talvez um pouco mais se tiver sorte”, “Kaiborg” disse à Surfer. “Depois não tem mais cheques, nada de coisas de graça chegando, nenhuma carona. Vi alguns dos melhores surfistas do mundo se arruinarem por não verem o fim chegando... esses moleques podem muito bem acabar não tendo nenhuma habilidade para a vida, talvez não consigam nem ser garçons, por isso perguntamos a eles: ‘Quando acabar, o que você vai fazer?’”.
Peço a Bruce que responda a pergunta de Kai. O que ele fará quando os cheques pararem de vir?
Bruce parece confuso. “Continuarei fazendo o que estou fazendo, freesurf”.
Rebato que vai chegar uma hora que os patrocinadores vão parar de pagar para ele fazer freesurf. Bruce olha para Blair, ainda mais confuso, parecendo procurar nos olhos do empresário uma confirmação de que este estranho rumor possa ser verdade, que os cheques podem parar de vir um dia. Blair olha para baixo “Procurar um emprego?”, Bruce me pergunta. “Poderia ser pescador...”.
Neste momento Blair interrompe. “Você não vai precisar se preocupar com isso”. Ele fala com calma e paciência, e depois olha para mim. “Igual a uma criança ou um jovem, Bruce tem uma mesada”.
Depois se vira para Bruce e tenta explicar a realidade financeira de ser um ícone do surf para o seu cliente. “Quando sua mesada do mês acaba, você não pode gastar mais”.
“Eu tenho mesada? Não sabia que tinha uma. Há quanto tempo eu tenho isso?”, Bruce agora está empolgado com o papo, e menos ansioso. “Eu já gastei mais do que ganhei?”.
“Não”, Blair admite. “A maior parte de sua mesada é poupada todos os meses”.
Você quase podia ver a pequena lâmpada da idéia em cima da cabeça de Bruce. Ele abriu um enorme sorriso e pulou da cadeira. Me ocorreu que eu estaria testemunhando o momento no qual Bruce Irons descobriu que nunca precisaria de um trabalho de verdade na vida. Mas não era isso. Bruce tinha outra coisa na cabeça. Ele somou dois mais dois e descobriu que Andy Irons devia ter uma mesada também.
“Meu irmão já gastou mais do que ganhou no mês? Já?”, Bruce está dominado pela curiosidade. Blair se recusa a responder, mas Bruce consegue ler a linguagem corporal dele. “Diga só sim ou não, Blair!. Já gastou? Ele já gastou, eu sabia!”.
Bruce está satisfeito. Ele fez melhor que o irmão. E isso é o que importa.
LUTANDO COM A MATEMÁTICA
De volta às armas. Estou conversando com um garoto havaiano de 4 anos com um cabelo moicano. Ele fica querendo ir em direção à linha de tiro, então tento distraí-lo com o meu iPhone. Um cara grande e sinistro com um sorriso tão grande quanto ele me dá uma cerveja gelada. Tenho a sensação que por trás daquele sorriso ele está vendo coisas que é melhor eu não saber.
Bruce pára de atirar e volta. Ele cortou o dedo engatilhando sua arma. E parece que não foi a primeira vez. Um de seus amigos parrudos vem até nós e sussurra algo para Bruce. Ele se esqueceu de inscrever o filho no Irons Brother’s Annual Grom Contest, competição que iria acontecer na manhã seguinte. Ele pergunta se o filho ainda pode participar do campeonato.
“Vou ligar pro meu pessoal e ver se ele pode participar”. Bruce pega o telefone, papel e caneta. “Qual é o nome dele e a data de nascimento?”.
O homem olha para ele com a expressão vazia.
“Você sabe, um, do dez de qualquer coisa”, Bruce fala.
“Março”, o homem responde.
“Certo... isso seria...”. Bruce e o homem começam a contar nos dedos. Um, janeiro. Dois, fevereiro. Três, março. Os dois falam juntos. Bruce escreve “3” no papel.
“Certo... de que dia?”.
O homem olha novamente com cara de quem não sabe. “Vinte e... três?”, ele chuta como se Bruce pudesse saber. Bruce escreve aquilo.
“De que ano?”. Silêncio. “Ele tem 7 anos”, o homem responde. “Não... talvez 6?”.
Eles começam a contar regressivamente a partir de 2010. Decido não ajudar. A data acaba sendo escrita no papel e passada pelo telefone. Bruce parece aliviado. Feliz por ter colocado o garoto no evento. Percebo que Bruce parece preso a um roteiro convencional e cauteloso: o casamento, depois a paternidade, tudo na hora certa, por volta dos 30 anos. Isso não é necessariamente uma norma no Kauai, como uma garota local me contou mais tarde: “No Kauai, em geral você se casa porque tem mais um bebê a caminho. E o seu padrinho pode ser o seu filho mais velho, que teve com sua namorada da escola”.
O PÓS-VIDA
“Está pronto para atirar?”, Bruce me pergunta. Dou de ombros. “Não sou muito de armas”.
“Ah, você tem que ir lá. Vai logo... toma!”. Bruce me passa sua escopeta. Fico surpreso que ele confie que eu fique ao seu lado com uma arma carregada. Eu mal o conheço. Já escrevi coisas cruéis sobre ele. Nossas vidas parecem ridículas naquele momento. Nós dois nos apaixonamos pelo surf quando éramos jovens e nossas famílias implodiam. Fizemos do surf a nossa fortaleza, a nossa fuga. Agora temos os nossos papéis, peças nas máquina que é a indústria, e nossa fortaleza desmorona com o fardo das expectativas. Fico em pé, me preparo, espero lançarem o prato, puxo o gatilho e não passo nem perto de acertar.
No dia seguinte, no Irons Brothers Classic, assisto às famílias cercarem o palco em uma tarde quente. O primeiro campeonato de Bruce, quando era jovem, tem uma enorme importância em sua vida. Ele ganhou. Keala Kennelly ficou em terceiro e Andy em quinto. Bruce ainda conta como Andy jogou o troféu no mato. Bruce sentiu o gostinho naquele dia, não de ganhar, mas o de irritar Andy ao ganhar. Aquilo foi o suficiente para fazer dele o surfista que é hoje.
Bruce e sua esposa, Mia, entregam os prêmios, alguns por mérito, outros por necessidade. Algumas poucas pranchas novas vão para garotos que não venceram, mas que precisam delas, junto com passagens de avião para Oahu. Os vencedores das categorias ganham viagens com todas as despesas pagas para o US Open, uma chance para aprenderem que existe um mundo enorme fora do Kauai, um mundo com mais oportunidade e menos beleza. Um lugar que é igualmente duro, mas de maneiras diferentes.
Bruce ganhou sua passagem de avião há mais de uma década, quando surfar era algo diferente. Ele viu o mundo, deu show, parou no precipício da grandeza... e ficou paralisado.
“Quando as pessoas diziam que eu era o melhor surfista de todos, aquilo me assustava”, Bruce me conta depois quando tomamos umas cervejas. “Me fazia perder todas as baterias. Eu só queria sair correndo e me esconder. Assim que começava a pensar em todas aquelas besteiras eu simplesmente ficava paralisado. Eu me fechava. Fico chateado pelo jeito que surfei o World Tour. Vejo o Dane e queria ter feito o que ele faz”.
Mas não haverá uma segunda chance. Não haverá retorno ao Circuito Mundial. A cultura está mudando ao redor dele. Penso em como Greg Noll deve ter se sentido em 1969 quando o mundo do surf mudou, com seus drops suicidas sendo substituídos pelo deslizar lateral das pranchinhas e ziguezague psicodélico de Morning of the Earth. Greg Noll se afastou no exato momento que o mundo do surf não precisava mais dele.
Agora Bruce tem a tarefa nem um pouco invejável de se reinventar ou desaparecer. Ele poderia se juntar aos jovens e dividir suas fraquezas com textos artísticos em um blog e fotos irônicas e temperamentais. Pessoalmente, Bruce é uma pessoa mais interessante do que sua imagem pública sugere. A alternativa é ficar careca e trabalhar duro, como Shane Dorian, pegando sua enorme habilidade e a colocando em uma coisa só, ondas e tubos grandes. Mas Bruce não parece interessado em se reinventar.
“Não sou um fanático por ondas grandes como o Dorian”, ele reconhece. “Gosto de ondas grandes, mas preciso traçar um limite. Como Mavericks, por exemplo, não consigo agüentar a água fria. Fico com medo... preocupado em morrer. Tenho uma filha e quero estar sempre com ela”. Então de onde virá a motivação para se manter em evidência? Bruce não parece preocupado com seus ganhos e legado, e porque faria isso? Ele é muito bem pago simplesmente para ser o eterno garoto sincero e habilidoso que sempre foi. Quando Blair pergunta a Bruce onde as crianças poderão vê-lo este ano, Bruce responde: “Em filmes de adultos. Não falando sério... em... droga! Vou começar a viajar mais”.
Blair dá uma ajuda. “Fizemos uma lista com picos que queremos”.
“Sim, mas eu nem vi”, Bruce admite. “Você mandou mesmo pra mim? Tem certeza? Ah, só quero surfar onde tem boas ondas. Quero surfar em Ours e outras lajes na Austrália. E uns beach breaks no México, estive lá no último verão com Nathan Fletcher. E Bali... mas, vindo de um lugar como este, odeio surfar com crowd. É quando o surf é considerado ‘trabalho’. Mas essa não é a razão de nós surfarmos. Ou será que é, Blair?”
No fim do evento, enquanto Bruce entrega os prêmios, ele faz pausas para que os familiares possam tirar fotos. As crianças parecem eufóricas, apavoradas e perplexas com o sucesso e a sorte que tiveram. O sorriso de Bruce é verdadeiro em cada foto, ele não está muito longe daquelas crianças. Ele simplesmente já foi mais longe, viveu coisas mais importantes, cometeu mais erros e deu um jeito de sobreviver a tudo isso, em detrimento de sua carreira. Se ele morresse depois de vencer o Eddie, ainda estaríamos debatendo quantos títulos mundiais ele teria ganhado. A Volcom venderia bermudas com o rosto “jovem para sempre” dele, a versão surfista de James Dean, Jimi Hendrix, Kurt Cobain.
Em vez disso, Bruce está sobrecarregado com a difícil tarefa de crescer, talvez até mesmo colocando um fim na longa e celebrada infância que o definiu. Ele se comprometeu com as amarras tradicionais da vida adulta sem hesitar — o casamento, um filho e a construção do lar perfeito.
“Comecei a construir a minha casa dos sonhos há uns oito meses”, Bruce me conta. Passeamos pela construção enquanto garota. “Eu e minha mulher desenhamos tudo. Eu a pedi em casamento aqui, nesta propriedade. Aqui é onde ponho todo o meu dinheiro”.
Mas um foco mais maduro na carreira ainda foge de Bruce. Enquanto Dorian vai atrás do primeiro grande swell do ano no Tahiti, Bruce fica em casa para o primeiro aniversário da filha. “Não sinto que estou diferente ou mais velho, ainda me sinto imaturo. Mas você precisa crescer quando tem um filho. Não sou mais descuidado e imprudente. A vida não se trata mais só de mim”.
Enquanto isso, Andy e Kelly estão de volta ao Circuito Mundial perseguindo as glórias do passado. Eles se preocupam com seus legados e em como competir com os melhores atualmente. Isso é muito mais importante para eles do que para Bruce. A casa é importante para Bruce. “Vou ter o meu barco em casa, minhas pranchas, uma garagem bem grande... será a primeira vez que poderei ter todos os meus brinquedinhos na minha casa... então, é claro que será muito legal. Tive que pegar mais leve com os games, mas quando tiver minha casa nova, sem vizinhos, vou detonar. Vou gritar até perder a voz”.
Esta é a verdade sobre Bruce Irons. No fim do dia, ele vai dirigir sua grande picape até sua casa enorme e abrir a porta a tempo de jantar com sua esposa e sua filha. Depois do jantar ele vai jogar videogame, com o seu trabalho duro feito. Bruce quer a mesma coisa que os moleques jogando online querem, ter os brinquedos mais legais em casa. Ter um momento de liberdade da pressão das expectativas, poder gritar em frente à televisão. Quando o surf não é mais uma fuga, os surfistas precisam encontrar outros caminhos que levem à liberdade.