09 perguntas para... Valdemir Corrêa

Uma síndrome ocular rara, agravada por "erro e incompetência médica", deixou Valdemir Corrêa cego aos 24 anos. Hoje, com 39, sendo que os dez últimos dedicados ao surf, ele é um exemplo de superação. Com uma prancha especial, desenvolvida para ele por Francisco Araña, o Cisco, coordenador da Escola Radical de Surf, localizada em Santos, "Val" encontrou no surf um novo alimento para sua vida. "Eu tinha o sonho de ser piloto de caça e com o surf, eu posso ter a sensação de voar nas ondas".

Nas linhas abaixo, ele fala com muita simpatia sobre a prancha, surf e dá uma lição de vida.



Como o surf entrou em sua vida?
Desde quando eu enxergava, sempre gostei muito de surf, quer dizer, sempre gostei, mas acompanhava pela televisão, comprava muitas revistas. Nunca pensei em procurar alguma escola. Em janeiro de 97 eu já era cego e o Cisco deu uma entrevista numa rádio falando que tinha trabalhado com deficientes visuais e físicos. Fiquei sabendo disso e fui até a Escola Radical para pegar essa oportunidade. Foi assim que eu comecei e até hoje estou lá pegando no pé dele.

Como nasceu a idéia da prancha ideal?
Surgiu das observações que o pessoal da escolinha começou a fazer. Por exemplo, se eu deitar numa prancha, meu corpo precisa estar posicionado no lugar certo, pois se eu estiver muito pra frente, quando entrar na onda ela vai me jogar pra baixo. Se eu estiver muito pra trás, quando eu entrar na onda, ela vai passar e eu não vou conseguir pegá-la. Então, começamos a fazer uma marcação de parafina na prancha para saber o posicionamento certo do meu corpo. Só que estava faltando uma marcação mais específica. QUando eu subia, meus pés, às vezes, ficavam ou muito pro lado direito ou para o esquerdo, ou seja, não tinha bem a noção de onde meus pés deveriam ficar. Foi a partir da observação de surfar diariamente, das dificuldades e do que é que poderia melhorar, que o Cisco desenvolveu a prancha.

Quais são as particularidades dela?
A prancha ─ de 2,76 metros de altura ─ tem um relevo para as mãos, que é super importante para dar firmeza. O bico e a rabeta são mais suaves para evitar impactos ou algum acidente. A quilha também é diferente e a própria superfície dela é feita de um material bem "soft", o mesmo usado nas pranchas de bodyboard. Isso quer dizer que, se por um acaso, eu cair e ela vier de encontro a mim não vai me causar nenhuma lesão. A prancha ainda tem guizos pra eu conseguir saber onde ela está.

Como você fez para surfar? Alguém empurra você na onda?
No início era necessária a supervisão de um monitor ou um professor para ajudar a entrar na onda. Com o tempo, fui me adaptando e ficando mais livre. Hoje eu já pego a prancha, entrou no mar e vou à caça das ondas. O trabalho deles comigo, atualmente, é de orientação para eu não me distanciar muito. O barato da escolinha é que não faço aula sozinho, faço junto das pessoas que enxergam também. Dentro d'água tem sempre um professor supervisionando todas as atividades e que dá toques para a pessoa aperfeiçoar o surf. "Olha sua postura, coloca mais pressão no pé da frente, tenta centralizar o seu surf", ou seja, agora estou mais nos detalhes para desenvolver "uma boa linha na onda".

Qual a sensação de surfar sem enxergar?
Liberdade. Surfar sem enxergar te dá uma liberdade total. Quando eu entro na onda sou eu e ela. Fico livre para desenvolver o meu surf ali. Com essa prancha eu posso fazer uma coisa que sempre quis: caminhar, andar em cima dela, ir pra frente, pra trás. Ela consegue bastante velocidade, que é o que eu curto muito quando surfo. Eu tinha o sonho de ser piloto de caça e com o surf eu posso conseguir ter essa sensação de voar com a minha prancha, voar nas ondas.

Você sente medo?
Não. A paixão que isso dá, a sensação e a motivação que isso causa são muito boas. Deixa você sem ter aquele medo. Na hora em que você está surfando com uma velocidade alta, eu sinto que quero um pouco mais, é uma coisa que pinta pelo seu corpo, pega você totalmente. É como se você se tornasse um átomo de energia atômica pura.

Que importância o surf tem na sua vida?
Muito importante, é através dele que eu consigo desmistificar um montão de coisas que dizem a respeito de que é cego. Em termos de inserção social também é muito legal. Por exemplo, lá na escolinha tem muitas crianças, adolescentes e tem um cara cego, com uma prancha embaixo do braço indo surfar, entrando no mar, pegando onda sozinho, fazendo várias manobras... Essa turminha está crescendo tendo uma outra imagem e com uma cabeça mais aberta. Diferente da imagem clássica daquele ceguinho com óculos escuros e bengala branca. Por exemplo, eu salto sobre a prancha para ficar de pé, esse saltar é muito importante porque a maioria das pessoas acha que meu equilíbrio é muito ruim, que a minha capacidade de direção é zero. Bastante gente pergunta se eu sei pra onde ir, se eu não fico com medo de ir para o alto-mar. É o seguinte, as ondas vêm do mar para a terra, então, não tem muito como eu me perder. Tem o posicionamento do sol que dá pra me guiar, o som da avenida que fica próxima, tem vários pontos de referência.

Em que o esporte ajuda?
Em várias coisas. Não adianta ter um argumento bonito ou ficar com teoria, eu tenho que mostrar fatos e é o que consigo com o surf. Para surfar é seu corpo que se expressa em cima da prancha, não é só subir e ficar ali estático, parado. Às vezes, quando eu quero mais velocidade, tenho que andar pra frente ou então quando está com muita velocidade, tenho que ir pra trás. É essa expressão corporal que eu ganhei com o surf e está me valendo muito, pois hoje um grande número de pessoas não acredita que eu não enxergo. Ando na rua e o que tem de gente que acha que eu enxergo é de se espantar. Eu atribuo a expressão corporal que ganhei ao surf. Estou tão natural, a ponto de as pessoas duvidarem que eu não enxergo.

Como funciona a Escola Radical? Tem outros deficientes visuais?
Sou só eu. Ano passado apareceu um rapaz que fez umas aulas, mas não continuou. É uma escola de surf pública, mantida pela prefeitura em parceria com a Sthill. Minha mãe que tem 62 anos começou a surfar lá há uns dois anos e está muito boa no bodyboard, até já pegamos onda juntos.