O SURF ESTÁ DE LUTO. AOS 32 ANOS, ANDY IRONS, O SURFISTA HAVAIANO MAIS VITORIOSO DE TODOS OS TEMPOS, PERDE SUA VIDA EM CIRCUNSTÂNCIAS MISTERIOSAS, MAS QUE NÃO APAGAM SEUS FEITOS, ENTRE ELES O TRICAMPEONATO MUNDIAL PROFISSIONAL.
Às 9h46 do dia 2 de novembro, o paramédico que fora chamado às pressas ao quarto do Grand Hyatt Hotel, em Dallas, Texas, onde Andy Irons passara a noite, atestava a morte do surfista. Falecia um dos maiores nomes do esporte de forma estúpida e prematura, deixando viúva a esposa Lyndie Dupuis, grávida de oito meses de um menino cujo nome será Axel.
Andy, que vinha de Porto Rico, onde rolou o Rip Curl Pro Search, estava bastante debilitado devido a uma virose que muitos acreditam ser dengue (mas nada foi comprovado). Ao que parece, alguns surfistas contraíram a doença durante a oitava etapa do ASP World Tour, em Peniche, Portugal, fato posteriormente rejeitado pelas autoridades lusitanas.
Mesmo debilitado, Irons foi para Porto Rico, mas não conseguiu sequer entrar na água, precisando ser atendido por um médico da ASP que lhe aplicou soro fisiológico para hidratá-lo e recomendou ir a um hospital. Em péssimas condições, o havaiano resolveu ir pra casa e pegou um vôo para o Kauai, ilha havaiana onde residia, fazendo escala no Dallas Fox Worth Airport. Na parada, Andy foi impedido de reembarcar pela sua situação delicada e acabou indo repousar no hotel, nesta que seria sua última noite.
Após o boletim do Tarrant Count Medical Examiner (órgão local onde se faz o exame legista), soube-se que o corpo do tricampeão mundial iria para a autópsia a fim de averiguar a causa do óbito. Um dia depois, mais notícias pipocaram, aumentando os rumores de que a morte do surfista poderia estar ligada a uma overdose de medicamentos. Dois dias após a morte de Andy, a polícia de Dallas já suspeitava de que o uso desses medicamentos aliado ao estado debilitado por conta da virose fizeram o havaiano entrar em colapso.
Irons vivia um drama há alguns anos, escondido pela imprensa e amigos, de problemas com drogas. Notícias de overdose e boatos de que estava viciado em ICE (tipo de anfetamina produzido em laboratório, que costuma ser vendido em forma de pedras cristalinas, em que o uso de forma prolongada causa a morte de células celebrais, parada cardíaca, falta de apetite, insônia, paranóias e manifestações psicóticas) rondavam os bastidores do mundo do surf e tomaram mais força quando no final de 2008 Andy anunciava um ano péssimo para “recuperar a motivação de competir”.
Sem sinais de traumas no corpo, segundo o jornal “Hawaian Star Adverstiser” foram achadas perto dele cápsulas de metadona, droga similar à morfina, num frasco de Ambien, potente remédio para insônia. A metadona é usada por viciados principalmente de heroína que estão se recuperando, para poderem suportar a abstinência das drogas. Além da metadona, teria sido encontrado Xanax, um antidepressivo usado para casos de ansiedade. Com isso, foi-se aberto um inquérito e feito um exame toxicológico que deve demorar de 60 a 90 dias para dar um resultado. O chefe da investigação da perícia, Michael Floyd, negou essa informação e despistou: “Não temos nenhum resultado que comprove se Irons tinha ou não metadona no organismo. Só porque nós achamos as coisas na cena não significa que elas estão relacionadas com a morte. Quando os testes de laboratório voltarem, teremos as respostas”.
Independente da causa da morte do surfista, a comoção com a notícia tão terrível sacudiu a mídia e seus fãs. Milhares de mensagens de pêsames à família foram postadas. Depoimentos dos amigos mostraram o quanto Andy era querido, afastando um pouco aquela imagem antipática construída através dos anos e criando uma rivalidade irracional entre ele e Kelly Slater, seu maior adversário.
Andy desde cedo teve problemas em adaptar seu enorme talento às derrotas. Não gostava de perder e, com um ego gigantesco, transformava isso em combustível para vitórias épicas e um surf incrível.
Lembro-me de chegar ao Meio da Barra em maio de 94 para assistir ao ISA World Surfing Games. Existiam alguns nomes que já chamavam a atenção, mas o jovem Andy, com apenas 16 anos, era o mais badalado. Só que, por mais que fosse a estrela do campeonato, aconteceu algo que se repetiu ao longo de sua vitoriosa carreira. Ele ficou em segundo plano ao descobrirem que seu irmão caçula, Bruce, um pivete que mais parecia um cotonete de tão magro e cabeçudo, surfava quase tão bem quanto ele. Andy perdeu prematuramente e começava assim a lidar com a sensação de que, apesar de tudo que fazia para ser o melhor, quase sempre vivia na sombra de alguém.
Em 1997, com 19 anos, conseguiu o feito de se tornar um Top 44 adquirindo o direito de competir na primeira divisão do Circuito Mundial. No início de 1998, sagrou-se campeão mundial Pro Junior. Muito se esperava dele em seu ano de estréia no Tour, mas a decepcionante temporada, mesmo conseguindo sua primeira vitória ao derrotar Michael Campbell numa final apertada em Huntington Beach, o fez perder sua cadeira terminando na 34º posição e tendo que fazer tudo de novo para voltar à elite. Talentoso e obstinado, conseguiu o retorno em grande estilo e em 2000 figurou pela primeira vez entre os Top 16 da ASP, também conquistando sua segunda vitória, em Trestles. Andy começou a mostrar que estava mais maduro em 2001, quando mesmo acontecendo apenas cinco das dez etapas programadas no calendário (devido ao atentado ao World Trade Center) finalizou o ano na décima colocação.
Foi em 2002 que a estrela de Irons realmente começou a brilhar após vencer na Austrália, em Bell’s Beach, e no Tahiti, onde mostrou faro e técnica apuradíssimos para as cavernas azuis de Teahupoo. Outra conquista na Espanha, em cima do brasileiro Neco Padaratz, e a consagradora vitória em Pipeline com Kelly Slater na final coroaram uma temporada sensacional que culminou com o seu primeiro título mundial.
A volta de Slater ao Circuito em 2003 acirrou uma rivalidade que já vinha sendo alimentada pela mídia. Andy era o campeão, mas a sombra de Kelly o incomodava e muitos não davam o crédito devido à conquista já que o maior de todos não estava na jogada.
Pois foi com essa motivação que o havaiano iniciou a temporada com três vitórias em cinco etapas. Mas não foi fácil. Slater venceu três eventos, encostou e disputou palmo a palmo a coroa do título. Tudo foi decidido em Pipeline, numa final emocionante entre os dois, com Phil MacDonald e Joel Parkinson como coadjuvantes. Kelly ou Andy, quem vencesse seria o campeão. O havaiano decidia em casa e tinha o apoio de toda a comunidade local, enquanto Slater, ainda frágil pela morte do pai, não conseguia afetar psicologicamente seu maior rival. Irons parecia ser uma pessoa com sérios conflitos internos, mas quando enfrentava Kelly esbanjava confiança e realmente foi a pedra no sapato do floridiano. Prova disso foi a vitória em Pipe, a confirmação do segundo título mundial consecutivo e a explosão de alegria no pódio, como se afirmasse para si e todos que ele era o cara. Não importava se o Circuito tinha Kelly ou não, o número 1 era Andy Irons.
Slater acusou o golpe e em 2004 não foi páreo para a mente vencedora de Irons. Nas primeiras cinco etapas, Andy chegou a duas finais, vencendo uma, e três semis. Com facilidade faturou o terceiro título seguido mostrando segurança, competitividade e concentração absurdas, sendo chamado de “homem de gelo”. Andy estava no Olimpo e foi aí que sua derrocada se iniciou.
Andando com péssimas companhias, começou a ir fundo nas drogas. Em suas viagens ao Brasil, era comum vê-lo virando noites em claro rodeado de “baba-ovos”. Quem acompanha os bastidores do esporte sabe que isso é fato comum desde os anos 80, mas a fisionomia do havaiano não mostrava que aquilo seria uma coisa passageira. Andy parecia curtir demais aquela fuga à pressão dos patrocinadores, fãs e até da então namorada.
Sua postura ficou mais agressiva, beirando a arrogância. Era difícil falar com Andy. A exposição de sua vida não era algo que o deixava feliz. Eram muitas rivalidades. Com seu irmão Bruce, com Kelly, com o mundo fora do Hawaii. Histórias de agressão por parte de seus amigos no North Shore começaram a deixar descontentes alguns colegas de Circuito. Sua omissão arranhou sua imagem. Enquanto seu compatriota Pancho Sullivan atacava os “xerifes” do Hawaii, Andy ficava quieto, meio que atestando o comportamento de seus asseclas.
Em 2005, Slater, revigorado, veio pelas beiradas e com uma atuação soberba em Teahupoo mostrava que recuperara sua velha forma. Andy novamente um adversário à altura. Mas será que desta vez estaria preparado? O tempo mostrou que não. Andy perdeu baterias inimagináveis e Kelly engrenou vitórias. O ápice dessa disputa naquela temporada foi em Jeffrey’s Bay, quando ambos se encontraram pela quinta vez numa bateria do Tour. Era a final do Billabong Pro, as ondas estavam perfeitas com 6 a 8 pés. Uma final de sonhos. Andy liderou a bateria até o último segundo, quando Kelly pegou uma direita e com quatro manobras fortes arrancou a nota que precisava para virar o resultado e sair comemorando pela praia enquanto Andy entrava no palanque com cara de poucos amigos, não querendo falar com ninguém. Era a primeira vitória de Slater sobre Irons e nem o troco, na final da etapa seguinte, no Japão, fez com que a confiança voltasse. Ele estava fora do trilho.
E foi ele mesmo que entregou o caneco de volta a Kelly ao perder para Nathan Hedge nas quartas de final do Nova Schin Pro, no Brasil, dando o sétimo título mundial ao floridiano com um evento de antecipação. Mais relaxado, venceu pela terceira vez o Pipe Masters, encerrando assim um ano em que não foi mal, mas que serviu para criar sérias dúvidas em sua mente sobre o quanto era importante tanta disputa acirrada.
Em 2006 Andy viu seu arqui-rival iniciar a temporada com duas vitórias. Ele, ao contrário, não conseguia manter a consistência, sua maior virtude. A redenção veio no Rip Curl Search, México, nas melhores ondas que um campeonato de surf tinha oferecido. Direitas tubulares e manobráveis com longa extensão eram a pista perfeita para s melhores do mundo exibirem seu talento. E Andy teve atuações soberbas, vencendo ali e mostrando aos seus companheiros que ainda era grande. Isso não lhe adiantou muito. Novamente Slater foi melhor conquistando o oitavo título com duas etapas de antecipação fazendo com que Irons se contentasse com o segundo posto.
Outra vez encerrada a disputa maior, Andy botou água no chope de Slater ao vencê-lo na final do Pipe Masters numa das maiores viradas de todos os tempos. Ele perdia para Kelly por combinação de duas ondas, com menos de 10 minutos para o término e com dois supertubos para o Backdoor conseguiu sua sexta vitória em sete confrontos contra o rival. Era sua quarta vitória no evento mais tradicional no surf e um alento para si.
O ano seguinte foi cruel. Joel Parkinson, Taj Burrow e principalmente Mick Fanning eram o ataque da nova geração. As manobras ultramodernas e a sede de vitória não encontraram resistência por parte de Irons. Sistematicamente ele foi sendo derrotado, até com facilidade, pelos “new boys”. No Chile, durante a quarta etapa do Circuito, protagonizou dois momentos marcantes, um pro bem e outro pro mal.
No quarto dia de competição, chegou dirigindo visivelmente alterado ao palanque, quase atropelando crianças que corriam pelo estacionamento. Foi repreendido e entrou na água para disputar uma vaga nas oitavas de final contra o brasileiro Victor Ribas. Seu estado era lamentável, mal conseguia falar. Mas mesmo assim arrumou dois tubos insanos e deixou a água com quase 10 minutos restando ainda de bateria. Não foi desrespeito contra Vitinho, apenas não tinha condições de competir. Expert em ondas tubulares e cascudas, Irons venceu o evento reforçando seu status de destemido em condições sinistras. O resto do ano foi um fracasso, derrotas nas primeiras fases e desistência de vir ao Brasil exibiam um cara que precisava urgentemente de descanso, do corpo e da mente. Aquele ímpeto do havaiano não existia em seu rosto, que agora parecia marcado por dúvidas.
2008 não podia começar de maneira pior. Andy foi arrasado por Kelly em Superbanks nas quartas de final do Quiksilver Pro na Austrália. Até aí, tudo bem. Mas o que chamou a atenção foi a forma como isso aconteceu. Andy não esboçou nenhuma reação, como se não tivesse força ou vontade para isso. Algo estava muito errado! Em Bell’s, etapa seguinte, uma surra ainda maior, 16,57 contra 2,80. Se contra seu maior rival e freguês ele não tinha motivação, imagine então com o resto. Andy foi tomando surras, etapas após etapas, e de quebra vendo Kelly vencer cinco eventos em sete disputados. O nono título do outro era questão de tempo. Sua ausência na etapa francesa confirmou que ele não estava bem. Em comunicado oficial, anunciava que não disputaria o Tour em 2009, pois precisava de descanso. Nos bastidores, falava-se em reabilitação por causa das drogas. Andy ainda competiu em Pipe, onde quase sempre se saía bem, mas viu Kelly vencer espetacularmente surfando ondas de 6 a 8 pés com uma 5’11”.
Em 2009, viajou e botou um projeto em prática: a reaproximação com Kelly. O convidou para uma viagem à Indonésia e fez um filme. “A Fly in the Champagne”, em que ambos surfam juntos e dão declarações sobre a enorme rivalidade. Acertaram os ponteiros, não se tornaram os melhores amigos, mas reconquistaram o respeito mútuo. Uma bela atitude que mostrava um lado humano e sensível que somente as pessoas próximas enxergavam. Apesar de disputar o Billabong Pro, no Tahiti, não se empolgou muito com os convites para vestir a lycra em outros eventos. Apenas, como sempre, em Pipeline, resolveu dar as caras. Surfou bem e foi até as oitavas de final, mas o importante era que declarava estar pronto para 2010: “Realmente estou me sentindo à vontade e seguro para retomar as competições no próximo ano”. Outra vez no batente, as coisas não foram bem assim. Visivelmente fora de forma e ritmo, foi presa fácil para a nova geração. Faltava-lhe explosão e velocidade.
Em Teahupoo, onde o que conta é coragem e técnica para entubar, Andy estava à vontade. Um dos maiores surfistas da craca tahitiana, ele achou novamente o caminho da vitória e de quebra venceu Kelly nas semis, comemorando na água como se tivesse vencido seu quarto título mundial. Era a vitória pessoal. Se tinha conseguido derrotar o maior de todos novamente, as coisas certamente iriam melhorar. A final contra C.J. Hobgood foi mera formalidade. Nada iria detê-lo.
A ducha de água fria veio logo em seguida, perdendo para Chris Davidson no Round 3 em Trestles e para Luke Munro na repescagem na França. Nova derrota em Portugal, também na repescagem, para Kai Otton sinalizava que ele não estava pronto. Porto Rico seria um bom lugar para reconquistar a confiança. Direitas pesadas e tubulares sempre foram favoráveis ao seu surf. Mas quis o destino que ele nem entrasse na água.
A virose contraída por Andy, segundo um comunicado do diretor Francisco Jorge, da Direção-Geral da Saúde, órgão ligado ao Ministério da Saúde português, não teria sido causada em Portugal. “Todos os casos de dengue diagnosticados até a data, em Portugal, foram importados de regiões endêmicas... Até o momento, em Portugal Continental, não foram detectados mosquitos vetores de dengue, nomeadamente Aedes aegypti e Aedes albopictus, fato que explica a ausência de casos autóctones”, diz um trecho do ofício. Rumores dizem também que, em vez de ir direto de Portugal para Porto Rico, Irons teria ido visitar a esposa no Kauai, lugar onde a presença da dengue é notória.
Independente da causa da morte de Andy Irons fica a lacuna de uma pessoa carismática e que está entre os maiores nomes do surf de todos os tempos. Travou disputas dignas contra Kelly Slater na maior rivalidade do surf profissional. Foi o vilão, foi o mocinho. Deixa um legado de atuações incríveis, atitudes de extrema coragem e mais do que tudo, a vontade de se superar. A si e a todos. Viveu seus demônios, mas quem não os vive? Pois Andy Irons finalmente encontrou a paz.