PÉ EMBAIXO


A Fórmula 1 deu uma lição de esportividade ao mundo. Os bólidos velozes e pilotos milionários são dominados há décadas por interesses de grandes corporações, mas este ano a competição justa roncou mais alto. Venceu o melhor piloto da temporada, Sebastian Vettel, venceu a equipe que mais respeitou a disputa limpa entre seus pilotos, a Red Bull. Por trás da mudança de cultura esportiva, está o austríaco Dietrich Mateschitz, dono da marca e da equipe. Ele decidiu manter na Fórmula 1 o espírito libertário e justo dos esportes de ação que sempre patrocinou, entre eles, é claro, o surf.

Antes da última prova do ano, o austríaco decretou: “Interferir na disputa nunca foi uma possibilidade para nós. Um segundo lugar nas circunstâncias corretas deverá ser melhor do que vencer com base em ordens e confirmações. No pior cenário, venceremos no ano que vem. Nossa filosofia se mantém a mesma: isso é um esporte e deve permanecer como um esporte”, disparou Mateschitz, para desespero dos “Dicks Vigaristas” do mundo.

Na postura do austríaco pode haver também uma jogada genial de marketing, um contraponto perfeito e vitorioso ao jogo sujo da Ferrari, que este ano voltou a mandar um de seus pilotos, o brasileiro Felipe Massa, abrir caminho para outro, o espanhol Fernando Alonso. Mas, na linha de chegada, o que importa é o resgate dos princípios perdidos do esporte.

O leitor, a esta altura, deve estar se perguntando “o que isso tem a ver com o surf?”. Sobretudo se, este ano, o campeão incontestável foi pela décima vez na história o melhor surfista de todos os tempos, Kelly Slater. Pensem em Slater fora da disputa.

Sem uma linha de chegada objetiva como na F-1, cria-se um atalho perfeito para a desigualdade no julgamento: a subjetividade. O surfista que aparece vestindo a marca mais forte e está nos melhores filmes, estrelando as melhores ondas, não tem cara de campeão? Quem vale mais? Um talento do Titanzinho ou um Coolie Kid? Como uma prancha não custa o mesmo que um carro de Fórmula 1, muita gente veste a lycra de competição.

No surf, esportividade tem um significado preciso: chances iguais para todos. Se não houver um esforço para mudar o quadro, a tendência é agravar a desigualdade, sobretudo com o investimento crescente por parte das grandes empresas que dominam o esporte.

Nessa conta, podem pintar distorções cada vez mais acentuadas de avaliação e sobrar decisões pouco esportivas.

O surf engatinha como business, mas pode aprender desde já que esporte é esporte. E ponto. Eu mesmo caí outro dia na vala comum da distorção provocada pela subjetividade. Preferi a estratégia à esportividade.

Logo após o término da etapa, defendi Adriano de Souza ─ que coincidentemente é um atleta da mesma equipe do austríaco que defendeu o jogo livre entre seus pilotos na F-1 ─ por uma suposta (e não confirmada) aliviada na bateria que deu o décimo título mundial a Kelly Slater. Na bateria anterior, Adriano cometera interferência no americano.

Até aí, nada. Mas, ao sair da água, Slater disparou grosserias públicas contra o brasileiro, deixando-o numa posição desconfortável na bateria seguinte. Escrevi que talvez Adriano tenha agido corretamente ao deixar seu rival solto no início da segunda disputa.

O americano, com sua influência sobre os juízes e o mercado, criou um ambiente hostil ao brasileiro. Sabia que teria boas chances de enfrentá-lo mais adiante, como aconteceu.

Com a praia inteira à espera do histórico décimo título mundial, Mineiro deve ter se visto num impasse: se esbanjasse a sua competitividade habitual, acirraria a relação com o cara que será por muito tempo o embaixador do esporte e provavelmente seria condenado dentro de seu próprio meio; se respeitasse o adversário, neutralizaria sua briga com o cara, sabendo que ele possivelmente se aposentará no fim da temporada.

Quando escrevi, tentei pensar estrategicamente, na linha “recuar agora, para avançar depois”. Mas os retornos recebidos de amigos, leitores e as declarações do austríaco Mateschitz me fizeram repensar o ponto de vista.

Sim, eu também posso mudar de opinião. Competição é pé embaixo o tempo todo, no surf ou na Fórmula 1.

Teria sido mais interessante ver um Slater revoltado com o brasileiro. E derrotado. Ninguém jamais vai saber se Mineiro simplesmente boiou ou se estava afetado pela circunstância, mas teria sido melhor ver briga.

O alívio do brasileiro é que Mineiro já provou, pela sua história, ser o surfista brigador que o país precisa para abrir caminho ao título mundial, apesar das distorções do esporte.