Kelly Slater. Por onde eu começo? Pelas 45 vitórias em etapas oficiais do ASP Tour? Nos anos 90 eu achava que ninguém bateria as 33 vitórias do Tom Curren. Pelo The Quiksilver in Memory of Eddie Aikau que ele venceu num Waimea enorme? Pois para mim, até aquela temporada de 2001/2002, esse campeonato era exclusividade de nomes diferentes como Denton Miyamura, Clyde Aikau, Keone Downing, Noah Johnson e Ross Clarke-Jones. Pela influência absurda, quase uma ditadura, das pranchas estreitas e finas por mais de uma década?
Pelas manobras modernas incorporadas aos campeonatos de um jeito que, num primeiro momento, até os mais inovadores do início dos anos 90 torceram o nariz?
Pelo domínio quase absoluto, durante 20 anos, do Circuito Mundial de Surf Profissional? Ta bom, eu sei. Andy Irons, seu único rival de verdade, venceu o título mundial três anos seguidos, em 2002, 2003 e 2004. Mas Slater foi o mais novo a vencer, em 1992, e o mais velho, agora em 2010. Slater parou durante três anos. Ou seja, de 1992 a 2010, ele venceu dez títulos dos 16 que disputou.
No caso dele, nem gosto muito de olhar através de números e recordes. Prefiro tentar imaginar quem conseguiu, num esporte que exige explosão, flexibilidade, velocidade e resistência, ficar no topo por duas décadas. Teve uma época, nos anos 90, que eu dizia pros amigos, brincando, que ele tinha que ter um defeito. Não era possível! O cara surfava como ninguém. Rosto e corpo de modelo que faz campanha para a Calvin Klein. Olhos claros e sorriso sincero. Inteligente e extremamente articulado. Espirituoso, simpático, coração bom. Ele só podia ser ruim de cama. Alguns riam. Aí veio a Pamela Anderson, depois a Gisele Bündchen e estragaram a minha piadinha idiota.
Em 2009 ele ainda se deu ao luxo de ficar experimentando pranchas diferentes, sendo que algumas eram ruins. Era como se ele estivesse tentando achar uma motivação especial, já que nenhum competidor o ameaçava de verdade na água. E ele já estava com 36 anos de idade. Fiquei com raiva. Depois de ganhar o nono título mundial em 2008, o cara começou 2009 brincando de experimentar pranchas diferentes, pô! Fiquei com raiva porque eu sabia que ele ainda estava surfando um absurdo e, como muitos, torcia pelo décimo título mundial, um feito que, àquela altura, já parecia difícil e improvável.
Eu sou suspeito, mas vou falar ─ quatro quilhas é um bom modelo de prancha. Não tão versátil como a três quilhas, mas é excelente em certas condições. Mas tem que ser boa, e a quatro quilhas que ele trouxe para o Brasil era uma merda. Na praia do Porto, em Imbituba (SC), me deu agonia vê-lo colocar três pranchas na areia e ficar trocando uma pela outra a cada cinco ondas surfadas. Deu vontade de chegar e dizer: “Pô, cara, pára com isso. Pega uma 5’10” squash triquilha, mais larguinha do que as que você tem usado nos últimos cinco anos, pisa forte na rabeta e ganha logo esse décimo título. Depois você volta a brincar de testar pranchas diferentes”.
Acho que ele surpreendeu ganhando o seu décimo título em 2010 surfando como está surfando. Eu pensei que ele talvez conquistasse isso usando a sua experiência, muita tática e um pouco da ajuda dos juízes. Mas não. O cara quebrou o ano todo e venceu por antecipação! Como estava torcendo por ele, cheguei a ficar meio apreensivo quando ele estava na água numa bateria difícil. Em certos momentos cheguei a me perguntar, quando ele remava numa onda, se ele se manteria sólido durante toda a onda e não fraquejaria. Só para constar que, quando ele ficava em pé na prancha, era como se estivesse em outro mundo, em outra dimensão. Não apenas pela performance, mas pela alienação baseada em confiança absoluta. Parecia que ele não traçava nenhuma estratégia na água e não se importava contra quem ele estava competindo. Desde os meus 25 anos de idade, estou com os olhos abertos, de maneira generosa, para fontes diversas de inspiração. Geralmente são pessoas ou feitos de pessoas. Em 1980, durante o Stubbies Pro, em Burleigh Heads, na Austrália, um competidor passou na minha frente indo para a água com uma prancha bem estreita e diferente para a época. Ele arrepiou na bateria. No dia seguinte, no jornal local, uma foto dele dando uma rasgada bonita estampava a primeira página. A legenda da foto identificava o cara: “Peter Droyun, lenda australiana, aos 33 anos, vence a sua bateria”.
Foi um susto. Naquela época, ninguém competia no Circuito Mundial com 30 anos de idade. E eu não imaginava que alguém aos 33 anos poderia ser ágil e, principalmente, moderno dentro d’água. Há uns dez anos, a segunda pancada, em termos de idade. Fiquei de cara quando li que o Roberto Marinho tinha inaugurado a TV Globo com 61 anos de idade. A mais recente inspiração veio na etapa do WT em Trestles, Califórnia. Aos 38 anos de idade, Kelly Slater usou e abusou da borda da sua prancha, cravando ela na água sem dever nada ao Dane Reynolds. No último dia, num mar clássico, perfeito para manobras de todo tipo, ele simplesmente destruiu as ondas com os melhores do mundo de três gerações à sua volta. O final dessa história todo mundo já sabe ─ em Porto Rico, ele venceu mais uma etapa de forma incontestável, com uma nota 10 na final, para não deixar dúvida e vencer mais uma vez por antecipação o título mundial.