Pablo Paulino ganhou seu segundo título mundial Pro Junior e, dias depois, recusou o convite dos sonhos da Billabong para ir morar na Austrália. Lá, aprenderia inglês, apuraria sua linha em ondas perfeitas e seria moldado cirurgicamente pela marca para um título mundial. Fábio Silva chegou ao WCT como promessa e, de uma hora para outra, desistiu da sonhada vaga. Tita Tavares foi a melhor surfista do mundo por anos, mas jamais levou uma temporada.
Em comum, todos têm a origem: o Titanzinho. A comunidade carente do bairro de Serviluz, em Fortaleza, é uma fábrica de talentos improváveis, que explodiram num ambiente aparentemente sem futuro, onde ainda prevalece a cultura da violência, do tráfico, da miséria. Ali, nasceram algumas das histórias mais dramáticas do surf contemporâneo.
Sempre me pergunto como americanos e australianos filhos dos típicos WASPs (White Anglo-Saxon Protestant), que não boicotavam eventos do Circuito Mundial na África do Sul nos anos do Apartheid, enxergam um cara que nasce numa favela, perde dentes na juventude e não fala uma gota de inglês, mas esculacha as ondas com uma simplicidade aterradora.
Fabinho Silva deve ter confundido ainda mais a cabeça cartesiana dos surfistas do mundo desenvolvido ao simplesmente desistir de correr a temporada de 1998, depois de sair da pobreza para a festa nababesca da ASP. Tinha a tal vaga sonhada por dez entre dez competidores do mundo e um punhado considerável de talento. O que lhe faltava?
Na época, eu cobria ativamente os brasileiros no Circuito Mundial como repórter de esportes do extinto Jornal do Brasil. Lembro de, nas conversas com Fabinho, ouvir dele as palavras “família” e “amigos”. Bateu o chamado banzo, uma saudade mortal da terra nativa. Isso é coisa que só acontece com quem se sente num ambiente hostil, e era assim que Fabinho se sentia: não podia dar um bom-dia na língua dos saxões e não ouvia ninguém dar bom-dia a ele. Vivia como um estranho no ninho. O Titanzinho, claro, era mais aconchegante.
Toda comparação tem sua imprecisão, mas quando o boleiro Adriano saiu de Milão, na Itália, para vir jogar no Flamengo, lembrei de Fabinho Silva. O atacante tinha outros problemas, mas também sofria de banzo de sua terra nativa, o Complexo do Alemão.
O tempo passou e, claro, o Titanzinho produziu outro outstanding no surf masculino: Pablo Paulino. O garoto criado nas vielas de Serviluz igualou o recorde de títulos do Mundial Pro Junior do quase lord australiano Joel Parkinson e caminhava para a glória. Mas, logo depois de ganhar pela última vez, declarou a um amigo do jornal O Globo:
“Meu patrocinador até me convidou para morar na Austrália por uns tempos. Mas eu já passo tanto tempo viajando, longe dos amigos, da família... Sei que, quando estiver no WCT, vou ter que viajar bem mais, para lugares como a Indonésia”, disse. De novo, o banzo.
Pablo perdeu o patrocínio, andou perdido em maus resultados e agora parece ter recuperado o gás com novo patrocinador e treinador. Pode explodir no cenário mundial a qualquer momento. Aliás, Pedro Robalinho, um carioca que joga nas 11 como bom técnico e empresário do garoto, dá a dimensão da diferença entre os dois mundos.
“O surfista australiano, não importa para onde ele vá, encontra alguém esperando por ele no aeroporto. Os melhores surfistas de lá têm todo tipo de acompanhamento desde garoto. No Titanzinho, mais da metade dos moradores é analfabeta. Todos ali tiveram uma infância muito difícil, sem perspectiva. Chegar a qualquer lugar, para quem saiu dali, é uma grande vitória. O Bibi, outro atleta cearense, chama os surfistas da comunidade de titânicos”.
Titânico, segundo o Aurélio, quer dizer aquele “que revela ou denota grande força”. Mais preciso, impossível.
O surf talvez não chegasse a lugar algum no Titanzinho não fosse a determinação de um cara chamado João Carlos “Fera” Sobrinho. Desde meados dos anos 90, ele toca uma escola beneficente de surf na comunidade com o pouco que tem à mão. No início do projeto, por falta de pranchas, criou o “método catá”, que consiste na simulação de vários movimentos executados pelos atletas na prancha, só que na areia. Fabinho e o próprio Pablo apuraram o equilíbrio com o “catá”, metodologia hoje reconhecida pela International Surfing Association.
Com vontade, pequenas ações geram grandes conquistas. Os surfistas do Titanzinho estiveram recentemente à frente do movimento popular contra a construção de um estaleiro na praia local, que iria inviabilizar o esporte e a história da comunidade. Ganharam a briga, provocando um racha entre a administração municipal de Fortaleza e o governo estadual do Ceará.
Na mesma onda das ações transformadoras, a surfista Lee Ann Curren e seu namorado, o bom surfista do Titanzinho André Silva, finalizaram recentemente o documentário Titan Kids, que revela sem filtros a realidade da favela que mais gerou bons surfistas no mundo.
Agora só falta a indústria entrar no jogo, com um naco de responsabilidade social. Está na hora das gigantes do surf assumirem voluntariamente que, sim, podem ajudar a transformar o Titanzinho num modelo mundial de comunidade que se salvou pelo poder das ondas. Hoje, algumas bravas empresas da região já ajudam bastante. Mas o Titanzinho merece mais, sobretudo de quem pode fazer muito mais.
Com ou sem ajuda, ali todos os surfistas são vencedores. Mais que isso: são heróis. Nasceram numa comunidade onde a luta não é pelo pódio, é pela sobrevivência. Cresceram perdendo amigos para o tráfico, para o crack, para a miséria. Graças ao surf, vão envelhecer com dignidade. E serão eternos ídolos dos novos titânicos. Troféu, nesse mundo, é só um detalhe.