PATRIMÔNIO HISTÓRICO


ESTE ANO O HANG LOOSE PRO CONTEST, O MAIS TRADICIONAL CAMPEONATO DE SURF DO BRASIL, COMPLETA 25 ANOS DE EXISTÊNCIA. MUITA COISA ACONTECEU DESDE A VITÓRIA DO AUSTRALIANO DAVE MACAULAY EM 86, NA JOAQUINA, ATÉ A COROAÇÃO DE ALEJO MUNIZ NA CACIMBA DO PADRE EM FEVEREIRO PASSADO, NA PRIMEIRA ETAPA PRIME DA TEMPORADA. CONHEÇA A TRAJETÓRIA DO EVENTO QUE FAZ PARTE E AJUDOU A MUDAR A HISTÓRIA DO SURF BRASILEIRO.


Quando Alfio Lagnado e sua Hang Loose decidiram encarar o desafio de trazer de volt uma etapa do Circuito Mundial ao Brasil não imaginavam, mas, do dia para a noite, a Hang Loose tornou-se uma marca conhecida mundialmente. Mais que isso. O Brasil, que até então recebera as estrelas do surf mundial no começo dos anos 80, no Rio de Janeiro, apresentou outro paraíso ao mundo. Dali em diante nosso país seria visto de outra maneira no cenário do surf mundial. Qualquer administrador ficaria de cabelos em pé diante da fatura que aquela empresa em busca de seu espaço num mercado em ebulição teria que quitar. “A idéia pintou do nada, na doideira. A oportunidade de fazer uma etapa do Mundial caiu no nosso colo. Não fizemos contas realmente. Os campeões mundiais Mark Richards, Tom Carroll, Shaun Tomson e Wayne Bartholomew vêm aí. Occy e Brad Gerlach eram pretendentes. Legal. Vamos fazer. E foi tudo na loucura”, declara Alfio, que confessa: “Não tínhamos idéia de fazer um, nem dois, muito menos 29”.

Este ano, durante a 29ª etapa do HLPC, a maior parte dos atletas que estavam competindo não havia nascido quando rolou a primeira edição, em 1986. Um evento histórico. O surf, ou seu estilo de vida, havia se tornado o sonho de consumo da geração que se encontrou nas areias da Joaquina com os deuses das ondas. Detalhe: havia ondas. Um mar clássico, que deixou brasileiros e gringos de boca aberta, coroou a grande festa numa Floripa “pré-invasão de gente de todo o país”. Um ar de cultura alternativa e certa marginalidade, aos olhos da sociedade, emprestou ao evento um tom de festival. Havia uma energia positiva que contagiou todo o mercado presente e o incrível número de pessoas que participou daquele momento mágico. Muitos dos Tops se perderam no meio de tanta comemoração e recepção para lá de calorosa. Naquela época havia espaço para isso, sem muita moderação. Na verdade o profissionalismo ainda estava se formatando. Campeões mundiais como Tom Carroll ou Shaun Tomson entravam e saíam do mar sem grandes esquemas de segurança, distribuindo autógrafos e posando para fotos com seus fãs.

Não havia divisão de acesso. O WQS só surgiria em 92. Antes era dez ou 12 atletas pelo mundial e ponto. Naquele tempo contávamos apenas com a divisão entre amadores e profissionais, mesmo que muitos dos “prós” não ganhassem nada além de umas camisetas e, com sorte, a inscrição dos poucos eventos que davam alguma grana substancial. Nos anos 90, as categorias Júnior e Mirim ganharam força. Isso gerou um impacto no profissionalismo que surgiria no século em que vivemos agora, no qual, aliás, as escolas de surf proliferam. Em 86 aprender a surfar era outro tipo de aventura e você queria apenas surfar. Competir era outro passo, arriscado, na verdade.


NO MEIO DA CRISE
A repercussão do primeiro Hang Loose Pro Contest foi incrível em todos os sentidos. A mídia não especializada, que naquele tempo não nos dava muita bola, divulgou o evento de forma intensa. A imagem do esporte estava mudando diante da sociedade. Os dividendos daquela ação mostraram que, sim, valia a pena investir naquele tipo de evento que gerava resultados tão positivos, mas... “Claro, queríamos continuar fazendo aquilo. Mas 87 foi m ano desgraçado. Com Sarney, inflação de 70%, boa parte das grandes empresas de surfwear quebrando exatamente depois do Plano Cruzado”, lembra Alfio. O fato é que naquela época a maioria das marcas de porte era “gringa não licenciada” que não poderia realizar um evento internacional. Isso era natural num mundo nada globalizado em que o Brasil não tinha muito contato comercial com o exterior. Quando chegou a época do campeonato a coisa estava feia e a triagem do evento foi feita em parceria com a Star Point. Rolou patrocínio da SeaClub, concorrente, e Alpargatas, que entrava no mercado assustando muita gente. Foi a saída para que a segunda edição acontecesse. “Foi um esforço muito maior realizar o evento de 87. Depois daquilo tudo pensei: agora vai”, diz Alfio. E foi mesmo.


MUDANÇA DE HÁBITO
As notas eram computadas com tecnologia de ponta. Ponta de lápis. Durante o Hang Loose Pro a pioneira Beach & Byte, fundada em 1984 para facilitar o sistema de tabulação dos eventos de surf da época, tomou força. O sucesso foi tanto que até hoje ela é responsável pelo sistema de notas e transmissões ao vivo da ASP. Atletas amadores podiam correr as triagens e o evento principal. A Abrasp havia nascido em 87 e ainda estava se estruturando. Em 87 e 88 o surf de Tom Carroll, na Joaca, foi arrebatador. Bicampeão, com pranchas que pobres mortais teriam dificuldade em manobrar hoje. Manobras cheias de power, bordas cravadas até o talo eram a tendência que até 89 teve a Joaquina como palco. A era das “twin fins” havia passado e a ordem agora eram pranchas que exigiam um surfista cada vez mais atlético. Aquele tipo de surf cheio de manobrinhas já era. O surfista agora era atleta. Os gringos nos davam uma aula, ao vivo, do que realmente podia ser feito numa onda. Os vídeos VHS já haviam tomado lugar dos raros 16mm, mesmo assim ver de perto nossos ídolos era algo inestimável. Web era ficção científica e nem TV a cabo existia.


NOSSO CAMPEÃO
Em 90 o evento foi para o Guarujá. São Paulo era o centro econômico do esporte e merecia assistir de perto àquele show. Por obra do destino, um atleta, que hoje se confunde com a imagem da própria Hang Loose, foi o primeiro brasileiro a vencer o evento que já se tornava um clássico. Fábio Gouveia, que, ainda moleque, assistia aos vídeos do bom desempenho de Sérgio Noronha, amador e único brasileiro entre os finalistas no evento de 86, fez a multidão que tomou a praia das Pitangueiras entrar em êxtase com seu estilo refinado e suas manobras precisas. O Brasil começava a ter peso no Circuito Mundial e aquela vitória nos convencia ainda mais disso, como diz o próprio Gouveia: “O evento de 90 foi um marco, uma quebra de tabu pra mim. É muito difícil chegar a uma vitória no Circuito Mundial e quando isso acontece as outras vêm mais facilmente. Vencer o evento do patrocinador, no Brasil, com casa lotada no Canto do Maluf, foi demais. Coisa que só curti tempos depois. Ali na hora eu não conseguia assimilar. Era minha primeira vitória no evento principal”.


STATUS E IMPORTÂNCIA
Em 92 o Hang Loose Pro passou a pontuar para a divisão de acesso, o WQS. Isso, aliado a sua mobilidade, deu contornos ainda mais a ver com o DNA da marca. Mostrar novos talentos, gerar oportunidades para que mais brasileiros tivessem a chance de chegar à elite. Isso ajudou a alavancar a classe profissional de surfistas que vinham de todo o litoral nacional em busca de um lugar ao sol. O Nick Wood venceu duas etapas seguidas no Guarujá. Mas esse foi o fim de uma era em que atletas não tão regrados subiam ao pódio. Kelly Slater venceu seu primeiro título mundial naquele ano. As pranchas estavam cada vez mais finas e estreitas como bisturis adequados ao surf cirúrgico da nova sensação, ainda com cabelos, do Tour. Acho que aquelas pranchas só funcionavam realmente bem para Slater.


NORONHA ENTRA EM CENA
Peterson Rosa venceu a última etapa da era Guarujá, em 95, mostrando a força do time brasileiro que se instalava no então WCT. No ano seguinte Fabio Silva deixaria claro, na baía de Maracaípe (PE), que o Nordeste, para onde foi o Hang Loose Pro, marcaria para sempre presença no cenário nacional. Até 2000, quando rolou etapa em Maresias (SP), cinco eventos foram vencidos por nordestinos. Naquele mesmo ano aconteceria a primeira etapa em Fernando de Noronha, de onde o evento não sairia mais (nos anos de 1999 e 2000 aconteceram duas etapas por ano do HLPC). Um evento sem pulseirinhas nem área VIP. Na praia a maioria das pessoas é de atletas, comissão técnica, organizadores e mídia especializada. Faz sentido. Antigamente era preciso encher a praia para que o campeonato fosse um sucesso. Desde o advento da web como TV e ferramenta divulgadora do surf o ais importante é que a ação ocorra em boas ondas. “Em todos esses anos um dos aspectos mais positivos foi justamente a troca de locais, dando oportunidade para outras pessoas no Brasil verem o evento e seus ídolos de perto. A ida pra Noronha foi uma conquista que culminará quando a etapa se tornar um WT por lá”, diz Gouveia, propondo algo que por enquanto parece inviável.


A EVOLUÇÃO DO SER HUMANO QUE SURFA
Se as pranchas são variações dentro de um mesmo tema, da primeira até a última edição do HLPC, ao menos agora vivem uma releitura, no mínimo divertida, de antigos designs. Experimentações interessantes podem nos levar a outros caminhos, como tenta nos demonstrar Slater. Mas há diferenças notáveis em outros setores como a grana. Nossa fatia do bolo. Em 86 foram distribuídos 875 mil cruzados. Fazendo as contas não seria muito hoje. No entanto era o bastante para movimentar patrocinadores e patrocinadores em volta de um mercado que desembocou na última etapa em Noronha bancando uma premiação de US$ 250 mil. Naquela época, por aqui, um contrato garantia um salário infinitamente menor do que os recebidos atualmente. Tudo bem, aquela galera estava apenas atrás de um sonho. Viver surfando, fosse do jeito que fosse. Plano vai, plano vem, e o Brasil melhorou. Collor iniciou a abertura do nosso mercado. Amadurecemos. Hoje há multinacionais bancando surfistas brasileiros antes mesmo que se tornem profissionais. A concorrência é acirrada, mas ser surfista profissional no século 21 pode garantir o burro na sombra depois da aposentadoria.

Outra mudança impressionante diz respeito à faixa etária dos atletas, que se expandiu de forma absurda. Nos anos 80 não seria concebível um Pipe Master em que John John Florence de 18 anos ou Slater de quase 40 pudessem vencer.


NOSSO UNIVERSO MUDA, MAS NEM TANTO
Muitos aspectos, como a moda, sofreram de uma pasteurização global. Mas a verdade é que nos últimos anos o surf cresceu no mundo todo. O número de etapas aumentou assustadoramente, mas perdemos espaço dentro da elite, mesmo nos destacando nas categorias de base. Ainda bem que o Hang Loose em Noronha foi a primeira etapa Prime de um Circuito Mundial que está se renovando e com um ranking único e mais dinâmico. Ao que parece isso oferece mais possibilidades para que o time brasileiro volte a ser mais numeroso.

O Circuito Brasileiro perdeu força diante de uma geração que tem outros horizontes. Os eventos Pro Junior garantem visibilidade e preparam garotos para adentrarem direto à elite. Temos uma geração que, como Mineirinho, nunca se empenhou em vencer o Circuito Brasileiro. Estava mais preocupado em aprender a surfar ondas sérias e acostumar-se com a vida na estrada. Sinal de globalização. O que importa agora é o mundo.

Naquele Hang Loose de 86 não poderíamos imagina que a tecnologia funcionasse tão bem para o surf. Evoluímos de plainas para máquinas de shape. Monitoramos online as ondulações, assistimos a eventos do outro lado do mundo em tempo real. Os salva-vidas de Noronha têm seu primeiro jet ski. A máquina de ondas não deve tardar a chegar. Porém algumas coisas não mudam. Os juízes continuam humanos, atletas inconformados ainda reclamam daquela onda e as multas da ASP continuam quase as mesmas. Ainda esperamos ver nosso campeão mundial. Uma onda é uma onda e queremos sempre outra melhor. Espero que ao menos isso não mude nos próximos 25 anos.