Pablo Paulino ganhou seu segundo título mundial Pro Junior e, dias depois, recusou o convite dos sonhos da Billabong para ir morar na Austrália. Lá, aprenderia inglês, apuraria sua linha em ondas perfeitas e seria moldado cirurgicamente pela marca para um título mundial. Fábio Silva chegou ao WCT como promessa e, de uma hora para outra, desistiu da sonhada vaga. Tita Tavares foi a melhor surfista do mundo por anos, mas jamais levou uma temporada.
Em comum, todos têm a origem: o Titanzinho. A comunidade carente do bairro de Serviluz, em Fortaleza, é uma fábrica de talentos improváveis, que explodiram num ambiente aparentemente sem futuro, onde ainda prevalece a cultura da violência, do tráfico, da miséria. Ali, nasceram algumas das histórias mais dramáticas do surf contemporâneo.
Sempre me pergunto como americanos e australianos filhos dos típicos WASPs (White Anglo-Saxon Protestant), que não boicotavam eventos do Circuito Mundial na África do Sul nos anos do Apartheid, enxergam um cara que nasce numa favela, perde dentes na juventude e não fala uma gota de inglês, mas esculacha as ondas com uma simplicidade aterradora.
Fabinho Silva deve ter confundido ainda mais a cabeça cartesiana dos surfistas do mundo desenvolvido ao simplesmente desistir de correr a temporada de 1998, depois de sair da pobreza para a festa nababesca da ASP. Tinha a tal vaga sonhada por dez entre dez competidores do mundo e um punhado considerável de talento. O que lhe faltava?
Na época, eu cobria ativamente os brasileiros no Circuito Mundial como repórter de esportes do extinto Jornal do Brasil. Lembro de, nas conversas com Fabinho, ouvir dele as palavras “família” e “amigos”. Bateu o chamado banzo, uma saudade mortal da terra nativa. Isso é coisa que só acontece com quem se sente num ambiente hostil, e era assim que Fabinho se sentia: não podia dar um bom-dia na língua dos saxões e não ouvia ninguém dar bom-dia a ele. Vivia como um estranho no ninho. O Titanzinho, claro, era mais aconchegante.
Toda comparação tem sua imprecisão, mas quando o boleiro Adriano saiu de Milão, na Itália, para vir jogar no Flamengo, lembrei de Fabinho Silva. O atacante tinha outros problemas, mas também sofria de banzo de sua terra nativa, o Complexo do Alemão.
O tempo passou e, claro, o Titanzinho produziu outro outstanding no surf masculino: Pablo Paulino. O garoto criado nas vielas de Serviluz igualou o recorde de títulos do Mundial Pro Junior do quase lord australiano Joel Parkinson e caminhava para a glória. Mas, logo depois de ganhar pela última vez, declarou a um amigo do jornal O Globo:
“Meu patrocinador até me convidou para morar na Austrália por uns tempos. Mas eu já passo tanto tempo viajando, longe dos amigos, da família... Sei que, quando estiver no WCT, vou ter que viajar bem mais, para lugares como a Indonésia”, disse. De novo, o banzo.
Pablo perdeu o patrocínio, andou perdido em maus resultados e agora parece ter recuperado o gás com novo patrocinador e treinador. Pode explodir no cenário mundial a qualquer momento. Aliás, Pedro Robalinho, um carioca que joga nas 11 como bom técnico e empresário do garoto, dá a dimensão da diferença entre os dois mundos.
“O surfista australiano, não importa para onde ele vá, encontra alguém esperando por ele no aeroporto. Os melhores surfistas de lá têm todo tipo de acompanhamento desde garoto. No Titanzinho, mais da metade dos moradores é analfabeta. Todos ali tiveram uma infância muito difícil, sem perspectiva. Chegar a qualquer lugar, para quem saiu dali, é uma grande vitória. O Bibi, outro atleta cearense, chama os surfistas da comunidade de titânicos”.
Titânico, segundo o Aurélio, quer dizer aquele “que revela ou denota grande força”. Mais preciso, impossível.
O surf talvez não chegasse a lugar algum no Titanzinho não fosse a determinação de um cara chamado João Carlos “Fera” Sobrinho. Desde meados dos anos 90, ele toca uma escola beneficente de surf na comunidade com o pouco que tem à mão. No início do projeto, por falta de pranchas, criou o “método catá”, que consiste na simulação de vários movimentos executados pelos atletas na prancha, só que na areia. Fabinho e o próprio Pablo apuraram o equilíbrio com o “catá”, metodologia hoje reconhecida pela International Surfing Association.
Com vontade, pequenas ações geram grandes conquistas. Os surfistas do Titanzinho estiveram recentemente à frente do movimento popular contra a construção de um estaleiro na praia local, que iria inviabilizar o esporte e a história da comunidade. Ganharam a briga, provocando um racha entre a administração municipal de Fortaleza e o governo estadual do Ceará.
Na mesma onda das ações transformadoras, a surfista Lee Ann Curren e seu namorado, o bom surfista do Titanzinho André Silva, finalizaram recentemente o documentário Titan Kids, que revela sem filtros a realidade da favela que mais gerou bons surfistas no mundo.
Agora só falta a indústria entrar no jogo, com um naco de responsabilidade social. Está na hora das gigantes do surf assumirem voluntariamente que, sim, podem ajudar a transformar o Titanzinho num modelo mundial de comunidade que se salvou pelo poder das ondas. Hoje, algumas bravas empresas da região já ajudam bastante. Mas o Titanzinho merece mais, sobretudo de quem pode fazer muito mais.
Com ou sem ajuda, ali todos os surfistas são vencedores. Mais que isso: são heróis. Nasceram numa comunidade onde a luta não é pelo pódio, é pela sobrevivência. Cresceram perdendo amigos para o tráfico, para o crack, para a miséria. Graças ao surf, vão envelhecer com dignidade. E serão eternos ídolos dos novos titânicos. Troféu, nesse mundo, é só um detalhe.
SALVEM OS TITÂNICOS
SURFISTA DE ALMA
Já se passaram oito anos desde que a havaiana Bethany Hamilton sofreu o acidente que mudou sua vida.
No dia 31 de outubro de 2003, Bethany foi surfar junto com a família Blanchard ─ Alana, pai e irmão ─ em Tunnels Beach, no Kauai. Durante a sessão, foi atacada por um tubarão tigre enquanto estava deitada em sua prancha. A então adolescente perdeu o braço esquedo e mais de 60% de seu sangue.
Parecia o fim de uma carreira promissora. Mas, incrivelmente, Bethany deu a volta por cima e um mês depois do ataque já estava de volta ao mar.
No ano seguinte, Hamilton retornou às competições e em poucos meses venceu o seu primeiro título nacional. Daí para frente não parou mais. Em 2007, Bethany realizou seu sonho ao tornar-se surfista profissional e virou presença garantida nos campeonatos da ASP. Por pouco não se classificou para o World Tour deste ano.
Demorou, mas finalmente essa história foi parar em Hollywood. No próximo dia 8 de abril estréia “Soul Surfer” nos Estados Unidos. No Brasil, a previsão é para julho.
A obra é baseada na biografia de Hamilton, que leva o mesmo nome do filme, e contará a história de vida da surfista. O elenco é formado por Anna Sophia Robb, Dennis Quaid, Helen Hunt e Carrie Underwood.
S.O.S. NORONHA
DE JANEIRO A JANEIRO, TURISTAS DE TODAS AS PARTES DO MUNDO INVADEM FERNANDO DE NORONHA. DESDE ALEMÃES QUE NO SEGUNDO DIA DE VIAGEM JÁ ESTÃO COR DE ROSA, ATÉ JAPONESES QUE NÃO SAEM DA POUSADA SEM NO MÍNIMO TRÊS CÂMERAS ─ TODO TIPO DE GENTE POUSA NO ARQUIPÉLAGO EM BUSCA DE UM GOSTINHO DO PARAÍSO.
LOCALIZADO A 545 KM DE RECIFE, PERNAMBUCO, NORONHA É UM CONJUNTO DE 21 ILHAS VULCÂNICAS. MAS APENAS UMA, A MAIOR DELAS, É HABITADA. AS OUTRAS 20 FAZEM PARTE DO PARQUE NACIONAL MARINHO E SÓ PODEM SER VISITADAS COM LICENÇA DO IBAMA.
COM APENAS 17 QUILÔMETROS QUADRADOS, A ILHA PRINCIPAL POSSUI PRAIAS PARADISÍACAS, VISUAL PITORESCO E UM RICO ECOSSISTEMA QUE FAZEM QUALQUER UM PERDER O FÔLEGO. EM UMA SIMPLES CAMINHADA PELAS TRILHAS DA ILHA OU NUM MERGULHO NA BAÍA DO SANCHO, É POSSÍVEL OBSERVAR INÚMERAS ESPÉCIES DE ANIMAIS E PLANTAS QUE SÓ EXISTEM POR LÁ E ADMIRAR UM DOS VISUAIS MAIS INCRÍVEIS DO MUNDO. NÃO É À TOA QUE NORONHA É O PRINCIPAL PARQUE MARINHO BRASILEIRO E UM DOS MELHORES LOCAIS PARA MERGULHO DO PLANETA.
COMO SE NÃO BASTASSE, FERNANDO DE NORONHA TAMBÉM TEM SURF ─ E DE QUALIDADE. ENTRE NOVEMBRO A MARÇO, TUBOS E MAIS TUBOS QUEBRAM COM IMPONÊNCIA NAS PRAIAS DE NORONHA. CHAMADO POR MUITOS DE HAWAII BRASILEIRO, O ARQUIPÉLAGO É PARADA OBRIGATÓRIA PARA QUALQUER TUBERIDER QUE SE PREZE.
EM TEORIA, FERNANDO DE NORONHA É O PARAÍSO. MAS, COMO QUASE TUDO NESSA VIDA, NA PRÁTICA A REALIDADE NÃO É BEM ASSIM.
Ao se aproximar de Fernando de Noronha de avião pela primeira vez, a vista da janelinha te faz entrar em outro mundo. Sobrevoar o Morro dos Dois Irmãos e ver o mar azul turquesa á em baixo, já te dá uma previa do que está por vir. A ansiedade bate forte nesse momento. Ao descer e pisar em terra firme, parece que você caiu na ilha do seriado Lost. A natureza é algo único desse lugar.
Ainda anestesiado com o cenário, ao entrar no pequeno aeroporto o primeiro baque: desorganização. A fila para pagar o TPA (Taxa de Preservação Ambiental) é algo um tanto estressante. Tudo bem, aeroporto é aeroporto. Mas mesmo depois de um projeto de ampliação concluído este ano, as reformas não se mostraram suficientes para atender o grande fluxo de visitantes.
POR MAR
Outra forma de chegar em Noronha é pelo mar. Os barcos são peças-chave para o funcionamento da ilha. Além dos cruzeiros lotados de turistas que movimentam a economia local, é por meio deles que todos os alimentos, remédios e combustíveis entram na ilha. Atualmente, o porto de Noronha ─ a única porta de entrada para tudo isso ─ não dá mais conta do recado.
O precário píer não suporta ─ especialmente em dias de mar agitado ─ os três barcos de alimentos e o de combustível que abastecem a ilha, semanal e quinzenalmente. Sendo assim, os barcos com alimentos e combustível têm que revezar-se para atracar, deixando muitas vezes as prateleiras dos mercados locais vazias por vários dias. Por esse motivo, os moradores de Noronha são constantemente obrigados a estocar alimentos.
A boa notícia é que já existe uma proposta de reforma do porto pronta e enviada ao Governo do Estado de Pernambuco ─ do qual Fernando de Noronha faz parte. Segundo a administração da ilha, os recursos já estão sendo liberados.
Outro grande problema que o arquipélago enfrenta é o da energia.
Atualmente, toda a energia da ilha é gerada pela Usina Termoelétrica Tubarão, administrada pela CELPE (Companhia Energética de Pernambuco). O problema é que o processo de geração de energia através de uma termoelétrica é altamente poluente.
Uma usina termoelétrica produz energia através da queima de combustíveis fósseis. Durante esse processo, gases nocivos são liberados no ambiente contribuindo para o aumento do efeito estufa, aquecimento demasiado da superfície terrestre e o aquecimento global. Além disso, o processo é caro.
O combustível usado na queima da usina é o óleo diesel, trazido do continente através dos barcos mencionados anteriormente. A cada quinze dias, uma embarcação carregada de diesel chega em Noronha. Ou seja, a cada suas semanas, o rico ecossistema do arquipélago corre risco de ser contaminado caso haja derramamento na transferência desse combustível para os tanques em terra.
Uma das soluções seria a instalação de fontes de energia renováveis. Existe um projeto para criação de torres eólicas na ilha ─ uma inclusive já foi construída pela Universidade Federal de Pernambuco, mas atualmente está quebrada.
Segundo Kleber Barros, funcionário da CELPE, a energia eólica seria ideal, mas ainda apresenta contrapontos. “A energia mais adequada para Noronha seria a eólica por não poluir, mas ela é muito cara e não retorna tanta energia quanto as termoelétricas. Hoje em dia nós gastamos em média 11 mil litros de diesel por dia e 800 kilowatts por residência. Para gerar toda essa energia utilizando fontes de energia eólica, o gasto seria enorme”.
Mas será que o custo de todo esse óleo diesel ─ e seu transporte até o arquipélago ─ não seria superior ao da instalação de fontes de energia eólica? Com base nos dados fornecidos pelo CELPE, são consumidos mais de 4 milhões de litros de diesel anualmente em Noronha. Se adicionado o custo do transporte, o gasto anual com energia supera facilmente os 6 milhões de reais.
Segundo estudos, o custo para a instalação de 10 torres eólicas (o mínimo necessário para prover energia para toda ilha) seria de cerca de 10 milhões de reais. Ou seja, com um investimento inferior ao gasto com diesel em 2 anos, poderia criar um sistema de geração de energia limpa e renovável.
SAÚDE
Mas segundo moradores do arquipélago, esses problemas não chegam nem perto da situação encontrada na área da saúde. Atualmente, o hospital de Noronha não possui infra-estrutura para cumprir com as necessidades básicas da ilha.
Apesar dos 3 médicos residentes, se alguém precisar de uma operação ou qualquer outro recurso de emergência, certamente terá de esperar. Nos casos mais urgentes, o hospital depende totalmente do salvamento aéreo que vem do continente. Tal procedimento é lento e caro ─ o salvamento aéreo é feito por uma empresa particular e pago pelo estado de Pernambuco com o dinheiro da taxa. Se o avião estiver em Recife, o preço do resgate é de 25 mil reais. Se ele estiver em outro estado, o custo sobe ainda mais.
Os moradores reclamam por um hospital que tenha estrutura básica, mas o sonho ainda parece um pouco distante. Pois para isso acontecer, é preciso manter uma equipe médica na ilha de no mínimo cinco profissionais. Segundo moradores, o Estado alega que não existem recursos para isso.
Gestantes também sofrem com a atual situação hospitalar. Acredite: o hospital da ilha não faz partos! (?) O procedimento das grávidas é se mudar para o continente no sétimo mês de gestação, para contar com acompanhamento médico ideal. O único detalhe é que o governo paga apenas a passagem de avião da futura mãe ─ o restante dos custos ficam por conta dela.
Problemas como estes são muito comuns em diversos estados mais pobres do Brasil. O que não dá para entender é como tudo isso acontece em Fernando de Noronha ─ uma pequena ilha, onde todos os visitantes pagam uma taxa diária só para pisar nela, além da fortuna que gastam com alimentação, hospedagem, passeios e outras despesas.
TAXAS E MAIS TAXAS
Todas as pessoas que entram em Fernando de Noronha pagam a Taxa de Preservação Ambiental, de acordo com a duração de sua estadia. Quem vai de barco, além do TPA, paga uma taxa de contribuição social e uma taxa de ancoragem.
O valor do TPA é de R$ 40,40 por dia. Segundo dados oficiais da administração, em janeiro deste ano 6.012 pessoas visitaram Fernando de Noronha e pagaram a taxa. Se fizermos uma média de que cada pessoa passou, no mínimo, uma semana na ilha, ao todo foram arrecadados 1.700.193 reais ─ apenas no primeiro mês de 2011.
Segundo a administração, o dinheiro da taxa é recolhido pelo governo de Pernambuco ─ mas usado em Noronha. Para os gastos serem aprovados, todavia, existe muita burocracia. Na maioria das vezes, esse processo é extremamente lento ─ meses e meses para solucionar necessidades urgentes.
Como se não bastasse, em dezembro do no passado foi aprovada uma licitação para a criação de uma nova taxa. Agora serão cobrados R$ 65/dia para brasileiros e o dobro para estrangeiros para a preservação da APA (Área de Preservação Ambiental do Estado), que constitui 70% do arquipélago. Segundo o governo, com essa taxa será feita a recuperação das trilhas, dos mirantes e acesso às praias.
Mas não é para isso que serve a Taxa de Preservação Ambiental?
Se o dinheiro das taxas fosse mesmo investido de maneira eficiente no arquipélago, será que moradores e visitantes sofreriam com todos esses problemas?
NEM TUDO ESTÁ PERDIDO ─ EXEMPLOS A SEREM SEGUIDOS
No caminho da Cacimba do Padre, pico mais procurado pelos surfistas e palco dos grandes campeonatos de surf que acontecem em Noronha, você é obrigado a passar ao lado do lixão. Com certeza, essa não é uma das melhores recordações que vai guardar da ilha. O cheiro de lixo é quase insuportável ─ em dias quentes e com o vento sul, pode ser sentido até no line up.
Apesar do problema do mau cheiro, o lixão ─ na realidade uma usina de compostagem ─ é um dos exemplos positivos de infra-estrutura e sustentabilidade de Noronha. Como o arquipélago é uma Área de Preservação Ambiental, por lei não é permitido enterrar lixo ─ ele tem que ser reaproveitado ou retirado. Atualmente são produzidas 10 toneladas por dia em Noronha. Plástico, papelão, alumínio e vidro são enviados de navio ao continente. O restante ─ lixo orgânico ─ é colocado em leiras para depois ser transformado em adubo. O mau cheiro vem do lixo orgânico em decomposição.
Outro projeto exemplar no arquipélago é o do viveiro de mudas nativas. Em parceria com a Hang Loose, o projeto TAMAR produz mudas nativas para reflorestar a ilha. Segundo pesquisadores, restam apenas 7% da vegetação original de Noronha.
De acordo com Rafael Azevedo, coordenador do TAMAR em Fernando de Noronha, o projeto vem dando certo. “Quando nós começamos, a idéia era produzir, além das mudas nativas, plantas frutíferas para a própria população plantar em suas casas”.
São iniciativas como estas que ainda mantém a esperança de que Fernando de Noronha manterá o título de paraíso brasileiro. Mas a verdade é que arquipélago ─ e seus moradores ─ estão em estado de S.O.S. Até quando?
REMANDO PELA VIDA
O SWELL HISTÓRICO QUE ATINGIU O PACÍFICO NORTE NOS DIAS 15 E 16 DESTE MÊS FICOU MARCADO PELA MAIOR ONDA JÁ SURFADA NA REMADA ATÉ ENTÃO EM JAWS, NA ILHA DE MAUI, HAWAII, PELO HAVAIANO SHANE DORIAN, E PELA MORTE DE SEU CONTERRÂNEO SION MILOSKY, EM MAVERICK’S, CALIFÓRNIA, REACENDENDO O DEBATE SOBRE OS LIMITES DO SURF DE ONDAS GRANDES SEM AUXÍLIO DE JET SKI.
Este mês ficou marcado na história do surf mundial. Na terça-feira 15, o renomado surfista havaiano Shane Dorian teve um dia de glória em que pegou em Jaws a que foi considerada por muitos especialistas a maior onda já surfada na remada em todos os tempos. No dia seguinte, a festa acabou virando pesadelo quando o swell encostou na Califórnia e Maverick’s quebrou pesada, culminando na morte de mais um surfista de ondas grandes no local, o havaiano da ilha do Kauai Sion Milosky, aos 35 anos. O feito de Dorian e a tragédia com Milosky, um big rider underground que vinha se destacando nos últimos anos nas maiores ondulações do North Shore e arredores, levantaram algumas questões. Até que ponto premiações polpudas, como as oferecidas no XXL Big Wave Awards, estão levando os surfistas a arriscar a vida de forma inconseqüente na busca por fama e dinheiro? A banalização do tow-in e a conseqüente retomada do surf na remada em condições extremas estão contribuindo para aumentar os riscos? São questões subjetivas, mas certamente pedem uma reflexão por parte dos envolvidos.
As grandes ondulações no oceano Pacífico costumam entrar durante o inverno, entre os meses de novembro e fevereiro. Março já é primavera, época de ondas menores, vento terral constante e menos crowd no outside.
O sistema de baixa pressão que gerou esse swell tardio foi um caso atípico. Coincidentemente o swell nasceu no Japão, onde poucos dias antes um mega terremoto seguido de tsunami devastara o arquipélago ─ no Hawaii e na Califórnia houve alerta de tsunami e evacuação da população em algumas áreas, mas no fim nada de significativo aconteceu.
DORIAN, O ATIRADOR DE ELITE
No pico do swell do dia 15, as bóias que medem as ondulações na costa havaiana, localizadas a cerca de 12 horas das praias, marcaram ondas de 17 pés e 20 segundos de intervalo, o equivalente a ondas de 30 a 40 pés de face nos picos mais favoráveis.
Há alguns anos os brasileiros vinham surfando sozinhos na remada as esquerdas de Jaws, na ilha de Maui, mas no mês passado alguns dos mais famosos surfistas de ondas grandes, como Greg Long, Mark Healey e Sion Milosky, se uniram no outside a Danilo Couto, Marcio Freire, Yuri Soledade, entre outros, e desafiaram na remada a pesada direita. Danilo detinha até então o que muitos especialistas afirmavam ser uma das maiores ondas surfadas na remada da história, se tornando um dos favoritos em duas categorias do XXL, de Maior Onda Surfada na Remada (Monster Paddle) e Melhor Performance (Ride of the Year).
Embalado pela atitude dos colegas e vendo a aproximação desse swell às vésperas do encerramento do prazo de inscrição para o XXL, o havaiano Shane Dorian juntou seus equipamentos e se mandou para Maui. Munido de uma 10’6” feita especialmente pelo shaper John Carper para esse tipo de onda, e com um colete especial que infla e traz o surfista à tona muito mais rápido com um simples aperto de botão, tudo isso aliado ao seu talento natural, Dorian foi o destaque da session pegando a maior onda surfada na remada em Jaws. Ele remou, dropou (o que mais parecia uma avalanche líquida) com segurança, fez a cavada como se estivesse no Backdoor e colocou pra dentro de um tubo monstruoso, mas foi esmagado pelo lip. “O ambiente estava perigoso, porque tinha uma galera fazendo tow-in, havia windsurfistas, e ambos passavam em alta velocidade com seus jets e pranchas à vela no meio de nós. Em condições assim, tão perigosas, você não quer pegar as ondas que sobram”, disse Dorian.
Além dele, estavam fazendo sua estréia em Jaws sem auxílio do jet ski os big riders brasileiros Carlos Burle e Edson de Paula. O baiano radicado em Maui, Marcio Freire, também estava na água e comentou a sessão: “Eu, Danilo, Tiago Candelot, Hilton Issa e o local Ohanu pulamos das pedras em frente às ondas. O que mais me impressionou mesmo foi a tecnologia do colete salva-vidas que Shane Dorian estava usando. Tinha uma espécie de bolsa anexada onde ele apertava um botão e o colete inflava. Shane usou pelo menos duas vezes e a cada vez tinha que trocar o refil, creio que isso deu mais segurança a ele”.
O forte vento nordeste atrapalhava um pouco o desempenho dos surfistas na esquerda de Jaws e as melhores ondas foram surfadas para a direita. Quando o vento é Kona, que sopra na direção contrária, as esquerdas ficam melhores. Outro detalhe que torna a sessão de surf na remada em Jaws adrenalizante é que não existe um line-up definido. “Em Jaws as séries aparecem do nada no horizonte e não há o que fazer a não ser soltar a prancha e rezar. Outro detalhe é que as direitas são mais difíceis de serem surfadas, pois são mais tubulares. Mas quando as bóias baterem acima dos 20 pés, como aconteceu algumas vezes em 2004 (e ainda não ocorreu nessas sessões de remada nos últimos três anos), as esquerdas serão a única opção. Sem chance de remar em uma onda de 60 ou 70 pés de face na direita”, atesta Freire.
DEPOIS DE JAWS, TOCA PRA MAVERICK’S
Quando marcam do Japão em direção ao Hawaii, as grandes ondulações do Pacífico batem na Califórnia algumas horas depois. Desde os anos 90, quando a onda de Maverick’s apareceu na mídia, os big riders surfam no Hawaii e na mesma noite pegam o avião para a Califórnia para surfar no dia seguinte em Half Moon Bay.
Em 1994, os havaianos Mark Foo, Brock Little e Ken Bradshaw fizeram uma das primeiras incursões nesse esquema, voando durante a noite para surfar Mav’s no dia seguinte. Foi nesse dia que Maverick’s fez a sua primeira vítima. Mark Foo caiu em um drop e seu corpo foi encontrado meia hora mais tarde boiando na beira das pedras. Desde então, alguns surfistas de ondas grandes continuaram essa saga de percorrer o swell pela costa do Pacífico, começando no Hawaii, passando por Maverick’s e muitas vezes dirigindo durante a noite de São Francisco para o México, para surfar no terceiro dia a onda de Todos Santos.
Nesse último swell, depois da session em Jaws, o baiano Danilo Couto foi um dos que pegaram o vôo para São Francisco com a intenção de encarar as pesadas e geladas ondas de Maverick’s. Na quarta-feira 16, o mar estava pesado e sinistro em Mav’s, como descreve o brasileiro radicado na Califórnia, Madio Chiarella, que dividiu o line-up com Alexandre Martins e Danilo: “Esse foi mais um dia em que as bóias de Half Moon Bay bateram os 16 pés com 20 segundos e algumas séries sólidas de 20 pés bombaram depois do almoço até o final de tarde”. Martins, que também é radicado em São Francisco, continua: “Eu saí do mar por volta de 17h30 e estava bem perigoso, o vento não era terral e as condições estavam adversas”. Para Danilo, a questão é um pouco mais complicada: “O mar estava bem grande, cerca de 15 a 20 pés sólidos, mas o que fez esse dia ficar mais pesado que os demais foi o longo período e a direção de oeste, a potência da onda estava na largura”, explica.
O local Ken “Skindog” Collins, que vive em Santa Cruz, era o anfitrião de Sion Milosky e Nathan Fletcher e os recebeu em sua casa: “Sion estava pegando as melhores ondas do dia, insano, dominando o pico como se fosse local. As ondas estavam grandes e todos perguntavam ‘quem é esse cara?’”, conta Skindog. Sion era conhecido por ser um dos mais atirados surfistas de ondas grandes do momento. No ano passado ele venceu o North Shore Challange, em Oahu, surfando uma onde de 25 pés na remada em Himalayas, pela qual faturou um cheque de U$ 25 mil.
O fotógrafo Ryan Craig estava no canal no jet ski e descreve os últimos momentos de Sion antes de o havaiano morrer afogado: “Ele foi na primeira onda da série, que tinha umas quatro ou cinco ondas. Sion vacou e sua prancha apareceu na superfície antes da segunda onda, mas ele ainda estava embaixo d’água. Depois que a série passou fui à sua procura pela arrebentação, nas pedras, no canal e não o achei. Cruzei com Nathan Fletcher, que também estava de jet ski, e avisei do sumiço de Sion. Fletcher foi procurá-lo perto da boca da marina e eu na lagoa em frente às ondas. Quando vi, Nathan estava com o corpo de Sion sobre seu jet ski, fui ajudá-lo e Sion estava com os olhos abertos e o corpo azul. Nathan estava desesperado, eu acho que Milosky ficou uns 10 minutos até ser encontrado”, relata Craig. A ironia é que Sion também estava usando o colete que infla e que pode ter salvado a vida de Dorian em Jaws, mas nesse caso ele obviamente não funcionou.
QUANTO VALE O SHOW?
No ano passado Mav’s tinha mostrado seu potencial letal no swell monstruoso que rolou durante a etapa do Big Wave World Tour. Foi típico dia que rolaria tow-in se os big riders não estivessem dispostos a encarar no braço as ondas que beiraram os 60 pés. Shane Dorian, durante a manhã antes do evento, e Carlos Burle, em plena bateria, tiveram experiências aterrorizantes e quase morreram afogados.
A morte de Sion Milosky foi a quinta entre as mais marcantes do surf de ondas grandes, todas as sessões na remada. O havaiano Dick Cross foi o primeiro caso conhecido, em 1943 na baía de Waimea. Depois foi Mark Foo, em dezembro de 1994 em Maverick’s. Don Solomon foi o terceiro, em Waimea em 1995. O quarto foi Todd Chesser, em fevereiro de 97 em Alligators Rock. São cinco mortes em sessões de remada contra nenhuma registrada no tow-in. A tese é defendida pelo big rider Dan Moore com o seguinte argumento: “No tow-in você tem seu salva-vidas particular, que é piloto, e também o colete salva-vidas”. Outro fato controverso é com relação ao uso do jet ski no canal em Maverick’s para garantir a segurança dos surfistas. Half Moon Bay é um santuário ecológico e o uso de jets particulares é proibido no local ─ os que estavam na água naquele dia estavam infringindo a lei.
No entanto, após mais uma tragédia, as autoridades voltaram a debater uma maneira de adequar o uso da máquina por equipes especializadas para realizar salvamentos em dias de ondas gigantes. Os acontecimentos nesse swell, que mistura glória e tragédia, levantaram a questão sobre até que ponto as premiações como o XXL Big Wave Awards potencializam o número de surfistas que buscam a fama e dinheiro surfando as maiores ondas do mundo.
É uma questão difícil de responder, pois as mortes de Foo, Solomon e Chesser aconteceram sem premiação nenhuma envolvida e numa época em que o alcance de seus feitos não era global como hoje. Shane Dorian, atualmente o melhor surfista de ondas grandes na opinião de muitos, garante que sua motivação é puramente passional. “O prêmio em dinheiro é um bônus, não um incentivo. Minha vida vale muito mais do que qualquer quantia oferecida no XXL, isso eu garanto. Faço por opção, porque eu amo. Faz eu me sentir vivo. Nenhum prêmio me faria ir lá fora e arriscar minha vida se eu não estivesse confortável fazendo isso”, declarou.
Danilo ficou em Maverick’s durante a semana seguinte à morte de Sion e presenciou a chegada da viúva dele ao local. “Foi uma cena devastadora. Ele deixou esposa e duas filhas lindas. Não acho que Sion estava puxando os limites pelo dinheiro, cada um tem seu dia e aquele era o dia dele”, pondera o baiano.
A busca por adrenalina e o desejo constante de desafiar os próprios limites e os da natureza sempre farão parte do ser humano. Muitos surfistas preferiram deixar de lado a segurança e a facilidade oferecida pelo jet ski para viver experiências cada vez mais radicais, como fizeram Shane Dorian, Danilo Couto e outros em Jaws nos últimos swells. Para o californiano Greg Long, esses episódios foram um divisor de águas no surf de ondas grandes. “Essas sessões de surf em Jaws na remada marcaram um novo caminho para os big riders”. Uma frase famosa do havaiano Mark Foo resume a essência da modalidade: “Se você quer experimentar a emoção máxima, tem que estar disposto a pagar o preço mais alto”.
REMADA × TOW-IN
Nas últimas temporadas de ondas grandes alguns surfistas começaram um movimento de volta às raízes, surfando no braço sem a ajuda do jet ski as maiores ondas que encontravam pela frente. O que vinha ocorrendo e chateando os experientes homens do mar era a mistura dos reais surfistas de ondas grandes com muitos surfistas inexperientes em dias grandes rebocados pelo jet ski, causando transtorno e um desvio dos reais valores da modalidade. Para Danilo Couto, residente em Mokuleia, North Shore de Oahu, o tow-in tirou um pouco do brilho da modalidade. “Qualquer um pode comprar um jet ski e se aventurar num mar gigante. Isso começou a causar problemas no mundo inteiro. Nada contra essa galera, mas resolvemos puxar o limite no braço mesmo, como era feito lá no começo da história do surf”. Um tempo atrás, em Sunset, vendo uma galera fazendo tow-in em Backyards em um dia pequeno, o lendário big rider Darrick Doerner comentou: “No mundo inteiro é assim, ouvi falar que na Austrália, Califórnia e até no Brasil é essa loucura, não é? Criamos um monstro. Esses surfistas viraram até profissionais do tow-in, mas nunca remaram em um mar de 20 pés”, definiu um dos criadores do tow-in ao lado de Laird Hamilton. Aliás, o que será que pensa sobre tudo isso o maior waterman de todos os tempos?
FATALIDADE OU ABUSO?
Fora as mortes de Mark Foo, em 1994, e de Sion Milosky, a poucos dias, em Maverick’s, outras três mortes em ondas grandes abalaram o mundo do surf nas últimas décadas. Na temporada de 1943, Dick Cross e seu amigo Woody Brown entraram em Sunset com o mar subindo e as séries ficaram grandes demais, obrigando a dupla a remar até Waimea para tentar sair da água. Algumas séries fechando o horizonte pegaram os dois, mas Dick foi jogado para o lado esquerdo da baía e nunca mais foi visto.
Em 23 de dezembro de 1996, Don Solomon perdeu a vida em Waimea depois de ter voltado com o lip na primeira onda de uma das maiores séries do dia. Poucos minutos antes ele havia surfado uma onda junto com seu amigo Kelly Slater e o big rider Ross Clark Jones. O californiano, local de Ventura, estava com 25 anos de idade e já era figura constante nos dias grandes.
Todd Chesser morreu no outside reef de Alligators Rock, em 97. Eu estava entrando no nesse dia em Waimea, com séries de 15 pés, quando uma série gigante de 20 a 25 pés fechou a baía. Os salva-vidas desesperadamente colocaram umjet ski na água e o experiente Terry Ahue passou batido por todos que estavam com suas pranchas quebradas ou sem cordinha se recuperndo da grande série que havia acabado de passar e se dirigiu para o lado de Haleiwa. Todd havia ido surfar na remada e Alligators com um grupo de amigos, entre eles, Aron Lambert. A previsão da TV mostrava que o dia iria amanhecer com ondas de 20 pés. Não foi o que aconteceu. Séries de 15 pés bombaram durante toda a manhã, colocando em dúvida se o mar realmente iria subir. A série maior pegou todos de surpresa e acabou tirando a vida de Chesser, que se afogou ao levar na cabeça.
MR. SURF
Estava com minha mulher em Nova Iorque, no carnaval, curtindo um merecido descanso depois de tanto trabalho nos últimos meses, quando me toquei que era hora de entrar no site da ASP e checar o último dia do Quiksilver Pro, etapa de abertura do World Tour 2011, realizada na Gold Coast, Austrália.
Era meu penúltimo dia em Manhattan e obviamente a pressão para dar uma volta pela Times Square estava enorme. Com jeitinho, disse que tinha que assistir ao Kelly Slater, único surfista que ela conhece, para arrumar o salvo conduto, não antes de escutar a seguinte fala: “O Kelly Slater ainda ta competindo? Pô, esse cara não deixa ninguém ganhar! Os outros devem ficar tristinhos”. Um pensamento feminino espontâneo que me fez refletir algumas horas depois, ao acompanhar a 46ª vitória do decacampeão do Circuito Mundial.
Nos últimos 20 anos, Slater venceu 10 títulos, o que já dá a incrível média de uma taça de campeão a cada dois anos. Contando que ele ficou três anos afastado, a estatística ainda melhora. O cara está se deparando com a 5ª geração de excelentes surfistas e continua no topo.
Kelly sucumbiu e ganhou de Curren, Carrol, Potter, Sunny, Occy, Machado, Beschen, Parkinson, Taj, Dane Reynolds, Jordy Smith e até de campeões como Andy Irons e Mick Fanning, por exemplo, que poderiam ter reinados mais longos, porém pararam no muro Slater.
Penso que quando um ídolo se torna tão ou mais conhecido quanto o esporte que pratica, isso não é um bom sinal. Slater certamente difundiu a atividade que pratica, pás um dia se aposentará, e o surf não pode ficar viúvo. Lembram de Michael Jordan, o deus do basquete americano? Quando ele se aposentou, o PIB americano teve uma ligeira queda, já que as ações de diversas empresas ligadas a ele e ao basquete profissional como Nike e MacDonald’s, só para citar duas gigantes, caíram, além da audiência das transmissões dos jogos ter despencado. A NBA levou anos para se levantar até que Kobe Bryant assumiu o posto (nas devidas proporções) de MJ, junto com outras revelações.
Slater tem 39 anos e venceu novamente, dessa vez com muita facilidade, sem nem ao menos precisar ter atuações espetaculares. Sua maior nota durante todo o evento foi 8.73 nas quartas-de-final contra Dustin Payne, muito pouco para um gênio. Ganhou de todos na experiência, controlando as disputas e só tendo problemas no Round 5 quando virou contra Adrian Buchan faltando apenas 3 minutos para o término.
Ver Smith, Fanning, Parko e até mesmo Taj, que estava voando, serem superados por um atleta quase 20 anos mais velho (no caso de Jordy Smith) e tentando arranjar motivação para continuar a competir me faz pensar no quanto Slater é bom ou no quanto os outros não são tão bons. Acho que Jordy tem tudo para ser o próximo papa-tudo, pois é ótimo nas marolas, grandioso nas maiores, além de estar melhorando bastante nos tubos e ser um bom competidor, mas pode acabar sofrendo o que Taj e Parko tiveram que aturar na última década, sendo apagados por uma hegemonia cruel que só mesmo Andy Irons, vencendo três vezes seguidas, e Fanning foram capazes de quebrar.
Vendo os enormes letreiros com a cara de Slater nas lojas da Quiksilver na Times Square e 5ª Avenida, templos da moda, dá para perceber que ele e o logo da marca fundem-se numa única coisa. E percebendo a enorme multidão que assistia apenas às suas baterias em Snapper Rocks, que seu nome também funde-se ao surf profissional.
Em 1999, quando ele resolveu se aposentar, o retorno de Occy movimentou a mídia e fez as pessoas não terem tanta saudade. Com a personalidade marcante e apetite de Andy Irons, Slater virou até figurinha secundária. Atualmente, não consigo visualizar nenhum surfista com tamanho carisma e talento para substituí-lo. Dane Reynolds poderia ser este cara, mas seu forte não parece ser as competições, e não se engane, num mundo cada vez mais capitalista, a glória só vem para os vencedores e não para os voadores.
Temo que a saída de Kelly vá tirar o surf da grande mídia. Com tantas outras atividades radicais sendo criadas e praticadas a cada ano, manter-se como o número 1 entre os esportes de ação vem sendo difícil e sem seu maior e talvez único embaixador, fique impossível. Podem até me questionar que isso não o afetará quando for pegar onda, mas lembre-se que a evolução das pranchas, manobras e até mesmo da bermuda que você usa para surfar vem de caras como Kelly. Sem eles, talvez você estivesse surfando de monoquilha 8’0”, usando garrote e vela.
Não acho que Slater vai se aposentar, não neste ano. E Jordy, Parko, Taj podem ter nova oportunidade de provar que podem vencer o maior de todos os tempos. Agora, se o floridiano levar o 11º caneco, acho que realmente minha mulher não me deixará mais ficar vendo eventos de surf pela internet quando estivermos de férias, porque afinal, "pra que ver se só ele ganha? Qual é a graça?”, dirá ela. Eu vou falar o quê?
10 perguntas para... Maurício Filgueiras
O CARIOCA MAURÍCIO FILGUEIRAS, MAIS CONHECIDO COMO “BOCHECHA”, É O CARA AVANÇADO DA BEACH BYTE, HÁ 13 ANOS LIDANDO COM O WEBCAST DA ASSOCIATION OF SURFING PROFESSIONALS, DIRETOR-GERAL DA EMPRESA EM TODA A AMÉRICA DO NORTE. SURFISTA DE 45 ANOS, BOCHECHA APRENDEU A SURFAR NO ARPOADOR: “EU FICAVA OLHANDO O JEFFERSON CARDOSO, TINHA ATÉ UMA PRANCHA SHAPEADA POR ELE”. ENTRE OUTRAS ATIVIDADES, FOI BAIXISTA DA BANDA OS NORMAIS, AO LADO DO GUITARRISTA DADÁ FIGUEIREDO E DO BATERISTA LÚCIO FLÁVIO, AUTORES DO HIT UNDERGROUND “BODYBOARD, JET SKI, FORA DAQUI”. MAS O NEGÓCIO DELE ERA COMPUTADORES, PROGRAMAÇÃO, DESIGN, TECNOLOGIA. NESTE PAPO COM O BLOG, BOCHECHA REVELA DETALHES DE COMO FOI PARAR NO CIRCUITO MUNDIAL E TAMBÉM ANTECIPA ALGUMAS NOVIDADES NA COBERTURA DESTA TEMPORADA NO SITE DA ASP.
01. COMO FOI O COMEÇO DO TRABALHO NA BEACH BYTE?
Eu era juiz da Abrasp e já utilizava o sistema de notas no Circuito Brasileiro. Assim acabei conhecendo Celso Alves, um dos sócios da Beach Byte, que ficou sabendo que eu fazia website. Um dia ele me perguntou se eu queria trabalhar pra ele porque não tinha operador pra fazer o Tour. Nem acreditei.
02. QUAL O SEU TRABALHO EXATAMENTE?
Sou desenvolvedor de software, mas desde que abri a empresa nos Estados Unidos meu trabalho está dividido entre a programação e a administração. Hoje eu cuido de toda a parte de contratação de pessoal, compra de novos equipamentos, novos contratos com clientes e desenvolvimento de novas tecnologias. Tento coordenar isso tudo com as freqüentes viagens a trabalho.
03. ONDE É SUA BASE?
O escritório fica em Oceanside, Califórnia, ao norte de San Diego. Esse vai ser meu sexto ano fora do Brasil. Mas todo ano retorno pra repor as energias e rever os amigos.
04. HÁ QUANTO TEMPO TRABALHA NO WEBCAST DO CIRCUITO MUNDIAL?
Tenho o provilégio de trabalhar ao lado do Mano Ziul, criador de tudo que hoje é o webcast. Tivemos um boom em 2008/2009, quando grandes produções tomaram conta das transmissões, e hoje posso dizer que atingimos um bom nível de qualidade. Porém ainda aquém de uma produção televisiva. Trabalho no webcast desde a primeira transmissão, faz uns oito anos.
05. QUAIS AS NOVIDADES PARA ESTA TEMPORADA?
Tecnologicamente falando, muitos aplicativos para as transmissões ao vivo. Aplicações para web, celular, sport bar e tudo mais que possa levar os eventos ao vivo para o público de forma fácil e interativa. Neste ano, lançamos durante o Volcom Pipe Pro, em janeiro, um novo player integrando vídeo ao vivo com os scores. Essa idéia nasceu de uma necessidade minha. Ao assistir aos eventos em casa, sempre gostei de ver em modo tela cheia, às vezes ligando o computador na TV para ficar comendo pipoca no sofá. Só que tinha que ficar voltando toda hora para o modo compacto para ver a última nota de alguém. Senti essa necessidade e criei um player com os scores integrado ao vídeo. Assim, o público pode assistir em tela cheia e controlar as notas ao vivo, resultados, estatísticas e tudo mais sem precisar sair do sofá. Outros aplicativos virão e serão lançados ao longo do ano. Na verdade, o público é que tem o poder de dizer se vai ser útil ou não. Por isso ficamos de olho nas estatísticas de acesso.
06. QUAIS RECURSOS SÃO UTILIZADOS NUMA COBERTURA?
Chegamos a um nível nas transmissões ao vivo que não há cobertura sem ser em HD. Hoje, vivemos uma busca pela melhor qualidade de imagem e o objetivo é ter qualidade de TV nas transmissões via internet. Ninguém mais aceita uma transmissão como era antigamente, toda borrada e que mal dá pra ver a onda. É uma loucura trabalhar com tecnologia e morar nos EUA. Quando você acha que está arrebentando surge uma tecnologia mais avançada que te deixa no chinelo. As coisas acontecem muito rapidamente.
07. E QUAIS AS NOVIDADES PRA AGILIZAR O TRABALHO DOS JUÍZES?
Sempre busco a integração entre os serviços que prestamos. O sistema de notas hoje alimenta os gráficos do webcast. E desde 2007 criamos o sistema de replay para os juízes, que também se integra à internet, fornecendo todas as baterias do evento, onda por onda, para serem revistas depois do evento. O replay para julgamento também é integrado ao sistema de notas e vem facilitando muito a vida dos juízes no Circuito Mundial. Algumas pessoas criticam o uso do sistema pelos head-judges por atrasarem a divulgação da nota. Mas o que percebo lá de cima é que na maioria das vezes a justiça é feita ao rever a onda no vídeo. Considero uma ferramenta fundamental em qualquer evento.
08. COMO É TRABALHAR COM MANO ZIUL?
Aprendi muito com ele e devo tudo o que tenho até hoje a essa figuraça. Ele criou o sistema de computação numa época em que computador era coisa de grandes empresas que tinham bilhões para comprar máquinas super potentes e que, por sinal, hoje em dia cabem num pen-drive. Mano está sempre um passo à frente dos outros. Tem uma visão do futuro ímpar e consegue perceber o que vai dar certo na frente e criar aplicativos que ninguém havia pensado antes. É fácil fazer igual depois que alguém criou. Isso vem ocorrendo com freqüência conosco. O pessoal copia na cara dura mesmo. Fico um pouco indignado no Circuito Mundial, pois premiam e exaltam tantos nomes que não fizeram nem 1% do que o Mano Ziul já fez para o surf. Ele revolucionou totalmente o esporte.
09. QUAL O MAIOR DESAFIO PARA MANTER UMA COBERTURA?
O maior desafio é sempre o fator tempo, que não podemos controlar. Colocar equipamentos caríssimos na praia já não é um bom começo. Mesmo em condições perfeitas, sol, temperatura amena etc., a maresia corrói qualquer eletrônico. Agora, quando entra chuva, frio, queda de energia e de conexão, aí sim vira um desafio. O público que assiste em casa não quer saber do perrengue que você está passando na praia. Ele quer ver a transmissão perfeita e é isso que tentamos passar.
10. COMO É O RELACIONAMENTO DA BEACH BYTE COM A ASP?
Não poderia ser melhor. Temos total liberdade para criar novos produtos e colocar no mercado. A vantagem é que a vitrine é grande. Procuramos sempre trabalhar juntos nos projetos tecnológicos. Mano Ziul é o responsável por este elo que já dura anos e tem total confiança dos membros da ASP. Ele é a Beach Byte dentro da ASP.
INSTINTO EGOÍSTA
“Caraca, a onda abriu pros dois lados!”, exclamou meu camarada Herick Alonso.
Na hora pensei a mesma coisa. Não pude evitar. Foi puro instinto.
Acabávamos de ligar a televisão e ver as imagens da destruição causada pelo terremoto que atingiu o Japão ontem. E nossa primeira reação ao ver a série tsunâmica chegando à costa não foi de solidariedade às milhares de vítimas da tragédia ─ mas sim de que a onda poderia, teoricamente, ser surfada.
Mais tarde refleti sobre nossa postura egoísta perante as cenas de absoluta destruição. Fiquei envergonhado.
Como pudemos pensar em surf num momento daqueles? Como pudemos nos imaginar descendo até a base daquele rolo compressor, imponente e perfeito ─ justamente a mesma onda que tirou a vida de tanta gente? As novas imagens e relatos que inundavam a net e a TV só fizeram aumentar o sentimento de culpa. Mas estou seguro de que não fui o único. Aposto que qualquer surfista teve pensamentos semelhantes ao deparar-se com as imagens do tsunami.
Então fica a pergunta: por que nós, surfistas, somos assim? Por que nos deixamos consumir por essa paixão (ou obsessão?) ao ponto de colocarmos o surf antes de tudo ─ inclusive à frente de uma das maiores tragédias na história da humanidade.
Sempre fui um ferrenho defensor da nossa cega obsessão. “Surf antes de tudo!” sempre foi o lema. Para mim, quem não compreendia o amor incondicional e infinito de um surfista pelo surf, ou nunca tinha descido uma onda, ou era um otário.
Mas se pararmos para pensar, veremos que essa doutrina que tanto nos caracteriza nem sempre é positiva. A reação às imagens do tsunami é apenas um exemplo. Pense em tudo que você já fez ─ e sacrificou ─ pelo surf. Suas economias, empregos, relacionamentos, amizades, vivências.
Assim como eu, aposto que a maioria dos surfistas considera os sacrifícios válidos. Se tivesse que escolher entre tudo que deixei para trás e o surf, não mudaria nada. Porém temos que reconhecer que nossas escolhas em prol dessa paixão são muitas vezes egoístas e nocivas ─ a nós mesmos e às pessoas ao nosso redor.
Mas que o tsunami abriu pros dois lados, abriu...
Quiksilver Pro Australia 2011
TODO INÍCIO DE TEMPORADA GERA EXPECTATIVAS. EM SNAPPER ROCKS, AUSTRÁLIA, HAVIA ALGO MAIS. A PRINCIPAL QUESTÃO DO QUIKSILVER PRO ERA SABER O QUE FARIA O DECACAMPEÃO MUNDIAL KELLY SLATER. EXTRAORDINÁRIO, ELE VENCEU OUTRA VEZ.
Algumas manobras em sua bateria de estréia foram suficientes para deixar claro que Slater ainda é o rei intocável do surf moderno. Depois, por motivos diversos, caiu de produção. Culpa da prancha, que veio a trocar, da condição esquisita do mar. Estava se sentindo mal. Virose? Na real parece que seu estado mental passa por mudanças. Mesmo passeando até a fase do “no loosers” (em que três atletas competem o vencedor segue direto para um round depois que os outros dois perdedores, competem novamente para ver quem segue no evento), em que, fora da normalidade, perdeu, cometeu erros inusitados para seu padrão de surf e não conseguiu produzir médias acima do patamar em que seus adversários estavam trabalhando. Depois do quinto round, quando passou por apenas 0.30 pontos por Adrian Buchan, aplicou mais uma lição de como vencer. Atropelou Dusty Payne e seu novo companheiro de equipe, o paciente Tiago Pires, para chegar à final contra Taj Burrow.
TAJ ERA O CARA EM SNAPER
Numa época de transição do WT, Taj iniciou o ano com ânimo renovado, mais power em suas rasgadas e a ressurreição de seu repertório “new school”. Com o novo critério de julgamento, essa é justamente a fórmula que vai funcionar este ano. Venceu uma etapa do QS só para aquecer. Com eventos em Bell’s, Brasil, J-Bay e Teahupoo pela frente, um título mundial é totalmente possível. Parece bacana, mas essa era a previsão do Power Rankings do Surfline em 2010, quando Taj venceu essa mesma etapa. Vale acrescentar que sua volta de manobras arriscadas beira a perfeição. Aqueles 0.12 pontos sobre Adriano Mineirinho que o levaram à semifinal ainda estão travados na garganta de muita gente. Mas a derrota diante da inteligência de Slater (mais que o próprio surf do careca) na final que era sua pode causar efeitos devastadores no ano de Taj. Johnny Gannon, seu técnico, terá trabalho para desentalar esse espinho de sua garganta.
A bateria perdida por Mineirinho, dura de engolir, vai ser digerida no embalo de outras ondas pelo brasileiro. A de Taj pode matá-lo engasgado.
Sabe aquele discurso minuciosamente despretensioso, de bom menino, estou me divertindo e tal? Quando Taj saiu perplexo da pesada derrota na final, sumiu para dar porrada na prancha, na parede e talvez em seu pobre ego combalido. Normal. É isso que a maioria faz quando perde. Na expression session em que Alejo Muniz deu show, Taj e Joel Parkinson só faltaram sair na porrada pela disputa das ondas. Isso é diversão? São de matar esses depoimentos “profissionalmente corretos” que tentam alterar a dimensão do que está realmente acontecendo na jaula dos leões.
SOBRE ESTRATÉGIAS, ONDAS E PRANCHAS
A vitória de Dusty Payne sobre Mick Fanning por 0.77, o 3º round (!) dá uma idéia de quanto a escolha de ondas foi primordial em vários momentos em que havia poucas com qualidade. Ah, o gélido Fanning também teve seu momento de explosão ─ fora das vistas do mundo, claro. Muitas ondas começaram com um cutback, coisa estranha pra Snapper que na maré (extra) baixa parecia ideal para a prática de rafting. Correnteza de louco. A derrota de Raoni Monteiro, no 2º round, foi em grande parte por conta do mar, assim como Jadson André que, com ondas melhores como as de Tiago, poderia ter vencido o português. Tudo bem, Tiago (que parecia um “Slater cover” por causa da careca e do logo no bico da prancha) estava realmente inspirado, mesmo quando fez uma linha repetitiva, até apanhar de Slater na semi. Mostrou que se pode também, sem aéreos o outras modernidades em cima de uma prancha normal, garantir bons resultados, especialmente esperando as boas da série. Heitor Alves também sofreu com a escolha de ondas contra Matt Wilkinson e não encontrou espaço para verticalizar e atacar o lip como manda o figurino. Aliás, “Wilko” foi a expressão maior de que um surf diferenciado pela prancha escolhida pode gerar bons frutos. Pena que, no caso dele, perder-se no caminho faz parte do roteiro.”Viajei tentando fazer curvas esquisitas. Fui idiota. Falei em fazer baterias inteligentes a semana toda e acabei enfiando o pé na boca”. Para dizer a verdade achei a prancha dele horrível. Mas ele e outros, como Michel Bourez, e seus carvings poderosos, apresentaram um display de pranchinhas pequenas e de bico mais largo desenvolvidas para ondas menores. Acredito cada vez mais num trabalho como o de Slater, que está montando um quiver para cada onda do Tour. O problema é que nem todo mundo entende tanto assim de pranchas.
Microtubos são tubos. Que o digam Slater, Jordy Smith, Mineiro e Parko, que deu um show de colocação para infelicidade de Kai Otton. O de Brett Simpson não foi micro e parecia até aquele Snapper que esperávamos. Esse menino está realmente dentro dos padrões exigidos para viver na elite. Exemplo de surf eficiente. Nem tão power, mas cirúrgico. Bem pensado e expressivo. Interessante reparar o número de baterias em que a diferença entre vitória e derrota não passou de um pontinho. Estratégia pesou muito. Basta ver a virada de Jordy contra Alejo, depois de tentar 14 ondas no inside, sem a prioridade. Tudo bem, dois juízes não deram a virada, como Luli Pereira (a meu ver um dos melhores da ASP), mas os outros deam. Slater venceu a final com duas ondas na casa dos 5 pontos. Precisa dizer mais?
A REGRA É CLARA, ÀS VEZES BURRA
Em Snapper ninguém foi salvo por grandes aéreos ou manobras mirabolantes. Wilko, Josh Kerr e mais alguns até tentaram, inclusive Alejo, no momento errado. Aquele aéreo rodando contra Jordy estava programado como primeira ou última manobra. Jogou no meio do caminho, num lugar complicado. Se voltasse não teria ficado na adrenalina que lhe rendeu a interferência no fim da bateria. Sim, foi interferência. Alejo, que dominou a bateria, não sabia ainda a nota da última onda que daria a virada a Jordy e tinha a prioridade. O sul-africano entrou na onda, cinco segundos depois a sirene tocou. A bateria acabou. Alejo entrou na onda de Jordy depois disso. Se não há bateria não pode haver prioridade. Foi isso. Mas sua estratégia, no geral, funcionou muito bem, mesmo não pegando os melhores momentos do mar. Se Jordy entrasse em mais uma onda teria cometido interferência. Apenas 15 ondas podem ser surfadas por cada atleta nas baterias de 30 minutos. Essa regra parece ultrapassada. Jordy teve que usar as 15 permitidas.
MAIS É MENOS
O WT 2011 terá mais etapas esse ano, 11, isso porque a ASP não conseguiu fechar outras que pretendia. Nem por isso a qualidade das ondas está garantida. Nova Iorque e Rio de Janeiro, por exemplo, ainda terão que convencer de que valem o ingresso. A escolha dessas locações (e algumas outras etapas Prime, mais pela premiação que pela qualidade) parece ter mais a ver com estratégias comerciais de que com aquele tal “Dream Tour”. Preferia assistir a menos e melhores ondas, como G-Land ou Fiji. Dificilmente uma ondulação dura mais que três dias, em qualquer lugar do mundo. A chance de que mais de uma ondulação consistente ocorra dentro da janela de dez dias, normalmente estipulada para cada evento, depende de muita solte. O novo formato de competição da ASP, que cortou de 48 para 36 o número de atletas na corrida ao título mundial, considerava a necessidade de diminuir o tempo de competição para que essa rolasse em ondas melhores, com os melhores do mundo. Perfeito. A tese funcionaria bem caso não colocassem os rounds de “no loosers”, que estendem o tempo de evento. São 51 baterias. No fim das contas, especialmente em picos como Snapper, que depende de maré e não funciona o dia todo, falta(rá) tempo.
Para agravar a situação vale lembrar que, como em Snapper, em Bell’s, Rio de Janeiro e no Somewhere as meninas competem no mesmo lugar dentro do mesmo prazo de espera. Ou seja, há menos tempo ainda. O risco mostrou-se verdadeiro na primeira etapa. Normalmente tentam colocar os homens nos melhores momentos do mar. Previsão climática e de ondas é algo inexato e, para sorte delas, ficaram com várias das boas direitas de Snapper. Muitas baterias, incluindo infelizmente as finais masculinas, poderiam ter rolado em ondas bem melhores.
DE VOLTA AO CARECA
Logo depois de ser levado nos braços do povo até o palanque, onde receberia seu 46º título em etapas do Mundial, Slater comentou meio displicente sua vitória, ao vivo na web. Ecoou mais como intimação. Traduzindo, ele disse: “Será que ninguém entendeu ainda como se vence isso aqui?”. Continuar nesse jogo deve ser pedreira, mas ele parece ter encontrado, outra vez, um jeito de permanecer no modo “matador”: “Se entro num campeonato quero vencer. Estou só tentando curtir isso. Estou tentando chegar a um ponto em que fico focado, mas não estressado. Não gosto do estresse da competição. Coloco muita pressão em mim mesmo. Quero tentar e chegar a um ponto em que possa competir relaxado”. Se ele conseguir isso, como delineou em Snapper, danou-se. Com 72.500 pontos no World Ranking, só sai se quiser. E foi correr o Prime de Margaret River, só para garantir a posição.
Há detalhes que não devem ser esquecidos. Ele sabe que, por vários motivos, ainda tem que estar lá. Vive em função da vitória, desde sempre. Talvez não saiba existir de outro jeito. Sua participação como acionista na empresa que o patrocina deve fazer parte do mix de motivação que o leva a continuar no jogo. Por outro lado, antevê o futuro do esporte, que ainda há de sentir sua falta. Para ou continua? Tudo leva a crer que segue em frente. Por motivos diferentes. O Quik Pro deve ter consolidado sua estratégia de vida no médio prazo. Pode-se dizer que agora se trata de quem pode ou não vencê-lo. Algo que irrita e gera admiração na mesma medida.
IRA DE NETUNO ─ IRLANDA
ERIC REBIÉRE E BENJAMIN SANCHIS DESAFIAM TUBOS DE MAIS DE 20 PÉS EM MULLAGHMORE HEAD, NA IRLANDA, DESBRAVANDO MAIS UMA FRONTEIRA DO SURF DE ONDAS GRANDES NO BILLABONG ADVENTURE DIVISION ─ PROJETO QUE TEM COMO OBJETIVO ENCONTRAR AS ONDAS MAIS PESADAS E SINISTRAS DA EUROPA.
Com sua história ancestral repleta de mistérios e conflitos, a Irlanda é normalmente conhecida por ser o berço do U2, uma das bandas de pop rock mais influentes das últimas décadas; do IRA (Irish Republican Army), ou Exército Republicano Irlandês, grupo paramilitar cujos atos terroristas chocaram o mundo entre as décadas de 60 e 90; do genial escritor, poeta e dramaturgo Oscar Wilde, autor de “O Retrato de Dorian Gray” (1980); ou ainda pela famosa cerveja preta Guinness e o licor Bailey’s (aquele docinho, que as gatas adoram). O que pouca gente sabe é que a terra do povo celta, conquistada no passado pelos vikings, também pode entrar na lista de interesses de um grupo bem diferente e underground: o dos surfistas de ondas grandes. Nas condições certas, a costa oeste da ilha (a Irlanda é uma das ilhas britânicas e a terceira maior ilha da Europa), virada para o Atlântico Norte, oferece ondas poderosas, num ambiente hostil que poucos estão habilitados e dispostos a encarar. O franco-brasileiro Eric Rebiére, carioca de Cabo Frio naturalizado francês, comprovou pertencer a esse seleto grupo. No começo de fevereiro, ele e seu parceiro de tow-in, o francês Benjamin Sanchis, escreveram seus nomes na história ao surfarem bombas descomunais de 20 a 30 pés em Mullaghmore Head, na costa noroeste, as maiores já registradas no pico. De quebra a dupla faturou o primeiro campeonato de ondas grandes promovido pela Irish Surf Recue, em parceria com a Billabong e Monster Energy.
Bicampeão europeu profissional e Top do ASP World Tour em 2003, Rebiére vem há alguns anos se dedicando ao big surf e foi recentemente contratado pela Billabong para se juntar a nomes como Shane Dorian, Manoa Drollet, Grant “Twiggy” Baker, Greg Long e Laurie Towner na Billabong Adventure Division, projeto da marca que tem como objetivo encontrar e desbravar as ondas mais pesadas e sinistras da Europa. “Ter o Eric como parceiro é uma honra e um privilégio. Além de ser um talentoso e destemido big rider, ele também é um expert em analisar os mapas de previsão dos picos da Europa, o que é fundamental para o sucesso desse tipo de empreitada. Essa nossa primeira viagem em dupla para desbravar o litoral da Irlanda foi surreal!”, comenta Sancho. Esse é realmente um ponto decisivo. A precisão na análise dos mapas meteorológicos e o conhecimento da geografia do local e suas variáveis fazem a diferença quando se trata de estar no lugar certo na hora certa caçando ondulações gigantes, raras e temperamentais.
ESPERA RECOMPENSADA
A viagem para a Irlanda já rondava os pensamentos de Eric e Sancho havia dois anos. Em muitas ocasiões eles chegaram perto de embarcar, mas na última hora as previsões não se confirmavam. Dessa vez, depois de analisar os mapas e ver a aproximação de um swell monstruoso de cerca de 30 pés, decidiram partir em menos de 24 horas. A trip foi organizada pelo manager da Adventure Division da Billabong na França, François Liet. Eric e Sancho voltavam de outra viagem quando começaram a planejar a ida à Irlanda. “Fazia uma semana que estávamos rodando pelas estradinhas que cortam as montanhas da Galícia em busca de novas ondas. Durante a volta para a França, paramos para descansar num hotel de beira de estrada a 100 km de Burgos. Sancho foi direto para a internet olhar o swell, pois já sabíamos que seria uma semana épica na Europa, com um rastro de swell de 18 a 30 pés expandindo da Islândia até as Ilhas Canárias. Poucas vezes vimos isso”, ressalta Eric. O grupo chegou à França no dia seguinte e tinha apenas algumas horas em casa antes de começar os preparativos para cair no mundo novamente. Morando na França a mais de dez anos e casado, ele viaja com a esposa e a filha de 7 meses do casal inspirado em outra família de surfistas viajantes. “Quando recebi a visita do Pato e sua família, no final do ano passado, gravando o programa ‘Nalu pelo Mundo’, pensamos em ir para a Irlanda. Mas na ocasião não tínhamos jet ski e não rolou”, lembra. Dessa vez eles tinham quatro jets à disposição, hotel, carro reservados e partiram em direção ao aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. “Assim que chegamos em Dublin, na Irlanda, já começou a adrenalina. Sancho não dava sossego dizendo que pegaríamos os tubos da vida. Eu, que tinha estourado o tímpano uma semana antes, estava ainda mais eufórico do que ele. Sabia que se houvesse mesmo as bombas de 30 pés de que ele tanto falava, uma hora ou outra ficaria profundo demais no tubo”.
MULLAH’D SEJA LOUVADA
Na manhã seguinte o grupo, que agora contava também com outros surfistas, como Andrew Cotton, Gabe Davies e Richie Fitzgerald (pioneiros em Mullaghmore), foi com dois jet skis ao encontro de duas bancadas da região, G-Spot e St Patrick’s, mas o swell estava muito grande e as condições não eram boas. “Uma hora depois tivemos que ir embora porque um dos jets estava pifando. No caminho de volta vimos Mullaghmore Head e parecia enorme mesmo de longe, a cerca de 1 km. Sancho nos deixou no porto e foi até lá checar. Cinco minutos depois ele voltou empolgado como uma criança, dizendo que tínhamos que ir para lá”, relata o fotógrafo Bastien Bonnarme.
Depois de viajar distancias continentais pelo oceano em águas profundas, a ondulação triplica de tamanho quando bate na rasa laje de Mullah’d, como o pico é chamado pelos locais. “A primeira impressão que tivemos lá fora não parecia tão grande, uns 8 pés, mas ela ia aumentando de tamanho à medida que ia entrando no inside e chegou a 15 pés. Algumas ondas eram muito difíceis de ler, poderiam emburacar mais pra frente ou mais pra trás. Começamos com cautela, mas no último dia estávamos puxando tudo pra dentro e entubando fundo”, diz Eric. Segundo ele, a temperatura, que variava entre 2 e 10 graus, nem era tão fria. Mesmo assim exigiu que usassem roupa de borracha, botas, luvas e gorro. Pior para Bonnarme, que lutou contra as correntes, a falta de mobilidade e quase perdeu a melhor parte de seu trabalho. “Eu estava empolgado e pedia ao Eric para me colocar cada vez mais embaixo do pico. De repente, fui surpreendido por uma série e quando tentei afundar para passar por baixo da onda, a roupa me segurou e levei na cabeça. Em um segundo, perdi meus pés de pato e senti estourar o leash que prende a caixa estanque ao meu braço. Fui sacudido como uma meia numa máquina de lavar e quando subi, graças ao wetsuit, entrei em pânico quando não vi meu equipamento por perto. Fiquei louco porque lá estavam as melhores fotos da session e da viagem. Mas não demorou para Benjamin gritar dizendo que havia encontrado pulei em cima dele de tanta alegria”, relata Bastien.
Segundo o fotógrafo, durante os três dias que durou o swell, o entrosamento de Eric e Sancho nas imensas esquerdas tubulares, que chegaram a 30 pés no ápice da ondulação, evoluiu nitidamente e culminou com a vitória da dupla no campeonato local, que teve participação de 22 dos melhores surfistas de ondas grandes da Irlanda e Europa. O evento contou com três barcos de apoio e foi acompanhado por centenas de espectadores maravilhados com o espetáculo da natureza na orla da pacata cidade. “Saímos da Irlanda felizes e com a sensação de missão cumprida. Levamos conosco o gostinho dos tubos grandes, da tradicional cerveja preta e espessa e nem tanto do bacon no café da manhã. Além da certeza de que um dia vamos voltar”, resume Eric.
Bastien reforça que ainda existem muitas ondas para serem desbravadas na Irlanda. “É um país incrível com ondas épicas. Existem muitas bancadas desconhecidas, mas é preciso estar disposto a pagar o preço de surfar com vento, chuva e um frio de doer. Estou curioso para saber o que essa dupla vai aprontar depois dessa. A trip foi um sucesso absoluto e certamente quero estar com eles nas próximas aventuras”.
PATRIMÔNIO HISTÓRICO
ESTE ANO O HANG LOOSE PRO CONTEST, O MAIS TRADICIONAL CAMPEONATO DE SURF DO BRASIL, COMPLETA 25 ANOS DE EXISTÊNCIA. MUITA COISA ACONTECEU DESDE A VITÓRIA DO AUSTRALIANO DAVE MACAULAY EM 86, NA JOAQUINA, ATÉ A COROAÇÃO DE ALEJO MUNIZ NA CACIMBA DO PADRE EM FEVEREIRO PASSADO, NA PRIMEIRA ETAPA PRIME DA TEMPORADA. CONHEÇA A TRAJETÓRIA DO EVENTO QUE FAZ PARTE E AJUDOU A MUDAR A HISTÓRIA DO SURF BRASILEIRO.
Quando Alfio Lagnado e sua Hang Loose decidiram encarar o desafio de trazer de volt uma etapa do Circuito Mundial ao Brasil não imaginavam, mas, do dia para a noite, a Hang Loose tornou-se uma marca conhecida mundialmente. Mais que isso. O Brasil, que até então recebera as estrelas do surf mundial no começo dos anos 80, no Rio de Janeiro, apresentou outro paraíso ao mundo. Dali em diante nosso país seria visto de outra maneira no cenário do surf mundial. Qualquer administrador ficaria de cabelos em pé diante da fatura que aquela empresa em busca de seu espaço num mercado em ebulição teria que quitar. “A idéia pintou do nada, na doideira. A oportunidade de fazer uma etapa do Mundial caiu no nosso colo. Não fizemos contas realmente. Os campeões mundiais Mark Richards, Tom Carroll, Shaun Tomson e Wayne Bartholomew vêm aí. Occy e Brad Gerlach eram pretendentes. Legal. Vamos fazer. E foi tudo na loucura”, declara Alfio, que confessa: “Não tínhamos idéia de fazer um, nem dois, muito menos 29”.
Este ano, durante a 29ª etapa do HLPC, a maior parte dos atletas que estavam competindo não havia nascido quando rolou a primeira edição, em 1986. Um evento histórico. O surf, ou seu estilo de vida, havia se tornado o sonho de consumo da geração que se encontrou nas areias da Joaquina com os deuses das ondas. Detalhe: havia ondas. Um mar clássico, que deixou brasileiros e gringos de boca aberta, coroou a grande festa numa Floripa “pré-invasão de gente de todo o país”. Um ar de cultura alternativa e certa marginalidade, aos olhos da sociedade, emprestou ao evento um tom de festival. Havia uma energia positiva que contagiou todo o mercado presente e o incrível número de pessoas que participou daquele momento mágico. Muitos dos Tops se perderam no meio de tanta comemoração e recepção para lá de calorosa. Naquela época havia espaço para isso, sem muita moderação. Na verdade o profissionalismo ainda estava se formatando. Campeões mundiais como Tom Carroll ou Shaun Tomson entravam e saíam do mar sem grandes esquemas de segurança, distribuindo autógrafos e posando para fotos com seus fãs.
Não havia divisão de acesso. O WQS só surgiria em 92. Antes era dez ou 12 atletas pelo mundial e ponto. Naquele tempo contávamos apenas com a divisão entre amadores e profissionais, mesmo que muitos dos “prós” não ganhassem nada além de umas camisetas e, com sorte, a inscrição dos poucos eventos que davam alguma grana substancial. Nos anos 90, as categorias Júnior e Mirim ganharam força. Isso gerou um impacto no profissionalismo que surgiria no século em que vivemos agora, no qual, aliás, as escolas de surf proliferam. Em 86 aprender a surfar era outro tipo de aventura e você queria apenas surfar. Competir era outro passo, arriscado, na verdade.
NO MEIO DA CRISE
A repercussão do primeiro Hang Loose Pro Contest foi incrível em todos os sentidos. A mídia não especializada, que naquele tempo não nos dava muita bola, divulgou o evento de forma intensa. A imagem do esporte estava mudando diante da sociedade. Os dividendos daquela ação mostraram que, sim, valia a pena investir naquele tipo de evento que gerava resultados tão positivos, mas... “Claro, queríamos continuar fazendo aquilo. Mas 87 foi m ano desgraçado. Com Sarney, inflação de 70%, boa parte das grandes empresas de surfwear quebrando exatamente depois do Plano Cruzado”, lembra Alfio. O fato é que naquela época a maioria das marcas de porte era “gringa não licenciada” que não poderia realizar um evento internacional. Isso era natural num mundo nada globalizado em que o Brasil não tinha muito contato comercial com o exterior. Quando chegou a época do campeonato a coisa estava feia e a triagem do evento foi feita em parceria com a Star Point. Rolou patrocínio da SeaClub, concorrente, e Alpargatas, que entrava no mercado assustando muita gente. Foi a saída para que a segunda edição acontecesse. “Foi um esforço muito maior realizar o evento de 87. Depois daquilo tudo pensei: agora vai”, diz Alfio. E foi mesmo.
MUDANÇA DE HÁBITO
As notas eram computadas com tecnologia de ponta. Ponta de lápis. Durante o Hang Loose Pro a pioneira Beach & Byte, fundada em 1984 para facilitar o sistema de tabulação dos eventos de surf da época, tomou força. O sucesso foi tanto que até hoje ela é responsável pelo sistema de notas e transmissões ao vivo da ASP. Atletas amadores podiam correr as triagens e o evento principal. A Abrasp havia nascido em 87 e ainda estava se estruturando. Em 87 e 88 o surf de Tom Carroll, na Joaca, foi arrebatador. Bicampeão, com pranchas que pobres mortais teriam dificuldade em manobrar hoje. Manobras cheias de power, bordas cravadas até o talo eram a tendência que até 89 teve a Joaquina como palco. A era das “twin fins” havia passado e a ordem agora eram pranchas que exigiam um surfista cada vez mais atlético. Aquele tipo de surf cheio de manobrinhas já era. O surfista agora era atleta. Os gringos nos davam uma aula, ao vivo, do que realmente podia ser feito numa onda. Os vídeos VHS já haviam tomado lugar dos raros 16mm, mesmo assim ver de perto nossos ídolos era algo inestimável. Web era ficção científica e nem TV a cabo existia.
NOSSO CAMPEÃO
Em 90 o evento foi para o Guarujá. São Paulo era o centro econômico do esporte e merecia assistir de perto àquele show. Por obra do destino, um atleta, que hoje se confunde com a imagem da própria Hang Loose, foi o primeiro brasileiro a vencer o evento que já se tornava um clássico. Fábio Gouveia, que, ainda moleque, assistia aos vídeos do bom desempenho de Sérgio Noronha, amador e único brasileiro entre os finalistas no evento de 86, fez a multidão que tomou a praia das Pitangueiras entrar em êxtase com seu estilo refinado e suas manobras precisas. O Brasil começava a ter peso no Circuito Mundial e aquela vitória nos convencia ainda mais disso, como diz o próprio Gouveia: “O evento de 90 foi um marco, uma quebra de tabu pra mim. É muito difícil chegar a uma vitória no Circuito Mundial e quando isso acontece as outras vêm mais facilmente. Vencer o evento do patrocinador, no Brasil, com casa lotada no Canto do Maluf, foi demais. Coisa que só curti tempos depois. Ali na hora eu não conseguia assimilar. Era minha primeira vitória no evento principal”.
STATUS E IMPORTÂNCIA
Em 92 o Hang Loose Pro passou a pontuar para a divisão de acesso, o WQS. Isso, aliado a sua mobilidade, deu contornos ainda mais a ver com o DNA da marca. Mostrar novos talentos, gerar oportunidades para que mais brasileiros tivessem a chance de chegar à elite. Isso ajudou a alavancar a classe profissional de surfistas que vinham de todo o litoral nacional em busca de um lugar ao sol. O Nick Wood venceu duas etapas seguidas no Guarujá. Mas esse foi o fim de uma era em que atletas não tão regrados subiam ao pódio. Kelly Slater venceu seu primeiro título mundial naquele ano. As pranchas estavam cada vez mais finas e estreitas como bisturis adequados ao surf cirúrgico da nova sensação, ainda com cabelos, do Tour. Acho que aquelas pranchas só funcionavam realmente bem para Slater.
NORONHA ENTRA EM CENA
Peterson Rosa venceu a última etapa da era Guarujá, em 95, mostrando a força do time brasileiro que se instalava no então WCT. No ano seguinte Fabio Silva deixaria claro, na baía de Maracaípe (PE), que o Nordeste, para onde foi o Hang Loose Pro, marcaria para sempre presença no cenário nacional. Até 2000, quando rolou etapa em Maresias (SP), cinco eventos foram vencidos por nordestinos. Naquele mesmo ano aconteceria a primeira etapa em Fernando de Noronha, de onde o evento não sairia mais (nos anos de 1999 e 2000 aconteceram duas etapas por ano do HLPC). Um evento sem pulseirinhas nem área VIP. Na praia a maioria das pessoas é de atletas, comissão técnica, organizadores e mídia especializada. Faz sentido. Antigamente era preciso encher a praia para que o campeonato fosse um sucesso. Desde o advento da web como TV e ferramenta divulgadora do surf o ais importante é que a ação ocorra em boas ondas. “Em todos esses anos um dos aspectos mais positivos foi justamente a troca de locais, dando oportunidade para outras pessoas no Brasil verem o evento e seus ídolos de perto. A ida pra Noronha foi uma conquista que culminará quando a etapa se tornar um WT por lá”, diz Gouveia, propondo algo que por enquanto parece inviável.
A EVOLUÇÃO DO SER HUMANO QUE SURFA
Se as pranchas são variações dentro de um mesmo tema, da primeira até a última edição do HLPC, ao menos agora vivem uma releitura, no mínimo divertida, de antigos designs. Experimentações interessantes podem nos levar a outros caminhos, como tenta nos demonstrar Slater. Mas há diferenças notáveis em outros setores como a grana. Nossa fatia do bolo. Em 86 foram distribuídos 875 mil cruzados. Fazendo as contas não seria muito hoje. No entanto era o bastante para movimentar patrocinadores e patrocinadores em volta de um mercado que desembocou na última etapa em Noronha bancando uma premiação de US$ 250 mil. Naquela época, por aqui, um contrato garantia um salário infinitamente menor do que os recebidos atualmente. Tudo bem, aquela galera estava apenas atrás de um sonho. Viver surfando, fosse do jeito que fosse. Plano vai, plano vem, e o Brasil melhorou. Collor iniciou a abertura do nosso mercado. Amadurecemos. Hoje há multinacionais bancando surfistas brasileiros antes mesmo que se tornem profissionais. A concorrência é acirrada, mas ser surfista profissional no século 21 pode garantir o burro na sombra depois da aposentadoria.
Outra mudança impressionante diz respeito à faixa etária dos atletas, que se expandiu de forma absurda. Nos anos 80 não seria concebível um Pipe Master em que John John Florence de 18 anos ou Slater de quase 40 pudessem vencer.
NOSSO UNIVERSO MUDA, MAS NEM TANTO
Muitos aspectos, como a moda, sofreram de uma pasteurização global. Mas a verdade é que nos últimos anos o surf cresceu no mundo todo. O número de etapas aumentou assustadoramente, mas perdemos espaço dentro da elite, mesmo nos destacando nas categorias de base. Ainda bem que o Hang Loose em Noronha foi a primeira etapa Prime de um Circuito Mundial que está se renovando e com um ranking único e mais dinâmico. Ao que parece isso oferece mais possibilidades para que o time brasileiro volte a ser mais numeroso.
O Circuito Brasileiro perdeu força diante de uma geração que tem outros horizontes. Os eventos Pro Junior garantem visibilidade e preparam garotos para adentrarem direto à elite. Temos uma geração que, como Mineirinho, nunca se empenhou em vencer o Circuito Brasileiro. Estava mais preocupado em aprender a surfar ondas sérias e acostumar-se com a vida na estrada. Sinal de globalização. O que importa agora é o mundo.
Naquele Hang Loose de 86 não poderíamos imagina que a tecnologia funcionasse tão bem para o surf. Evoluímos de plainas para máquinas de shape. Monitoramos online as ondulações, assistimos a eventos do outro lado do mundo em tempo real. Os salva-vidas de Noronha têm seu primeiro jet ski. A máquina de ondas não deve tardar a chegar. Porém algumas coisas não mudam. Os juízes continuam humanos, atletas inconformados ainda reclamam daquela onda e as multas da ASP continuam quase as mesmas. Ainda esperamos ver nosso campeão mundial. Uma onda é uma onda e queremos sempre outra melhor. Espero que ao menos isso não mude nos próximos 25 anos.