PAIS E FILHOS


Quem viveu sabe. Começar a surfar nos anos 70 era um drama. Quase uma novela mexicana. Só o fato de demonstrar qualquer interesse pelo esporte dos reis havaianos já era motivo de intermináveis discussões em casa. Chantagens voavam mais do que bala perdida. Era como se estivéssemos enveredando por um caminho marginal sem volta. Passavam-se meses convencendo os pais a dar aquela força no aniversário pra comprar a tal prancha. E me lembro de que, quando isso acontecia, elas tinham que ser quase invisíveis. Ficavam escondidas em lugares ermos, como garagem, corredor do prédio, cozinha, quarto da empregada (coitada!), ou na casa daquele amigo com pais mais liberais. Sem falar que as próprias pranchas eram uns tocos horrorosos, pesadas, grossas, e davam de borda loucamente. A gente mal conseguia carregar até a praia.

E tentar explicar o porquê de viajar pra lugares exóticos com altas ondas, como Peru, El Salvador, Marrocos, Hawaii, Bali? Eles não entendiam mesmo. "Mas por que tão longe? Você tá maluco de se meter nesses lugares?", diziam, altamente contrariados. Lembro-me de reunir um povo em casa pra ver um filme de surf no meu quarto e meu pai ficar irritado com a barulheira, com a gritaria. Isso foi antes do vídeo, ainda era super 8! Sem falar que os pais ficavam indignados com a grana que a gente gastava com as revistas Brasil Surf, Surfer e Surfing. Achavam um desperdício, uma bobagem. Correr atrás de onda era outra roubada. Alguns poucos pais levavam, mas a maioria não queria nem saber. E todo mundo colava de carona no carro desse raro pai gente boa.

Mas as coisas mudaram muito nestes últimos 30 anos. Canso de ver fotos de pais "aplicando" seus filhos antes mesmo de saberem andar, segurando a mãozinha, em pé numa prancha na sala, embevecidos com o "jeito" que o bebê leva pra pegar onda. "Olha, vai ser goofy que nem o papai...". E as pranchas saíram dos porões e foram parar em lugar de destaque na casa, algumas até na sala, algumas até penduradas na parede, flutuando no teto. Ficam expostas como se fossem obras de arte numa galeria. Como quem diz: "Aqui vivem surfistas". Os pais sabem exatamente qual a prancha ideal pros seus filhos. São eles próprios que encomendam, em geral com aquele shaper amigo, que faz tudo sob medida pro pimpolho.

Em muitos casos são os pais também que programam as viagens dos seus filhos, pois sabem exatamente que tipo de onda favorece cada estágio. Sabem com que idade já dá pra levar pro Hawaii, quando encaixar um Peru, quem sabe um feriado na Guarda... E, em vez de ficar indignados, embarcam juntos. Não só embarcam, como fotografam, filmam, editam, sonorizam e ainda mandam pros amigos. Os tempos mudaram mesmo. Em vez de reprimir, são ps pais quem mandam, por e-mail, filmetes incríveis pescados do YouTube pros seus filhos. E quando rola algum filme novo maneiro todo mundo assiste junto na TV da sala. Hoje a maioria tem assinatura de revistas, e quando rola alguma matéria absurda é o pai quem mostra pro filho. E, se o moleque leva jeito, o pai já vislumbra toda uma carreira nas competições, acompanhando nos eventos, negociando com possíveis patrocinadores. Verdadeiros pais de miss.

Os tempos mudaram muito. Começar a surfar hoje em dia é muito fácil. O surf virou um esporte maciçamente aceito pela sociedade, aparece nas novelas e é exaustivamente coberto por uma mídia atuante. Mas para isso acontecer os pais levaram chumbo grosso no lombo e muitas duras. Foi o preço. A coisa boa é que pais e filhos passam bem mais tempo juntos, seja em casa, seja nas trips. Ter esse interesse comum é um elo importamente entre as duas gerações. Mas, como sempre acontece, não há ganho sem perda. Acho meio ruim que a nova geração não tenha que lutar pra conquistas seu espaço, que ganhe tudo de bandeija. Essa coisa de na minha época os pais não entenderem de surf nos deixava de posse de um segredo que tinha a ver com ser jovem, que tinha a ver com ser de uma outra geração. Eles eram os caretas conservadores e nós éramos os novos ventos de libertação. O surf era só nosso e isso nos fazia especialmente diferentes. Mas, por mais moleza que os novos tenham, uma coisa nunva vai mudar. Ninguém vai lhe dar o surf, você vai ter que pagar seus pecados dentro d'água, como todo mundo. Foi assim na minha época e é assim hoje. E isso é muito bom.