Depois de um ano e meio morando no Hawaii, surfando ondas de sonho, e um ano e meio morando em Saquarema, fazendo pranchas com o Betão e também surfando ondas de sonho, voltei ao Rio de Janeiro, com 22 anos de idade, para morar novamente com minha mãe. Meu pai, oftalmologista famoso na época, me convenceu a fazer vestibular para medicina, depois de três anos desconectado de qualquer tipo de estudo acadêmico. Quando lembro disso, acho inacreditável. Após começar a surfar de maneira apaixonada, aos 14 anos, num paraíso chamado Arpoador; fazer pranchas, aos 16 anos, e ganhar o meu dinheirinho; viajar para o Peru por dois meses e meio, aos 17 anos; continuar a fazer pranchas e a ganhar minha grana; voltar ao Peru, aos 18 anos, e no final daquele ano (1973), ir morar no Hawaii, aos 19, emendando depois com Saquarema, aos 21 anos, como é que fui parar num cursinho noturno de pré-vestibular, em Copacabana, cheio de estudantes que fumavam cigarro na sala de aula, por um semestre inteiro?
Não sei o que deu em mim, mas quando passei em uma das últimas opções de faculdade, longe do Rio, acordei para a realidade. A minha realidade. Eu queria tentar viver do surf. Ou pelo menos viver surfando o máximo que pudesse. Já ganhava dinheiro fazendo pranchas desde os 16 anos, mas meu pai sempre me ajudou. Agora, não mais. Minha recusa definitiva em fazer medicina estabeleceu nosso acordo: ele não me ajudaria mais financeiramente. Meu pai era legal comigo, e aquela foi sua última tentativa para me convencer a seguir a carreira dele. Não lembro de ter sentido medo com a afirmação dele: “Já que você quer viver do seu jeito, faça por onde, se sustente!”. Eu tinha descoberto, desde os 16 anos, que consertando prancha, shapeando, laminando ou fazendo a prancha inteira, ganharia dinheiro. Percebi, em minhas primeiras viagens, que também podia fazer isso no exterior. E fiz. No Peru, verão de 72, só consegui ficar dois meses e meio porque consertei pranchas num canto da casa onde morava. Com 800 soles (uns R$ 150, na época) emprestados pelo Bruja, um amigo peruano, para comprar resina, fiz dinheiro suficiente para viver bem por um mês e meio, depois que acabou a grana que tinha levado do Brasil.
No Hawaii, de 73 a 75m fui um degrau acima e, além de consertar pranchas também laminava numa oficina improvisada, na garagem da casa onde morava, em Sunset Point. Entre uma e outra viagem, eu já tinha ganhado salário mensal durante mais de um ano para ser “piloto de testes” das pranchas JL/Haty Surfboards, entre 72 e 73. Consertar, laminar e shapear pranchas eram tarefas físicas trocadas por dinheiro. Ser piloto de testes de uma marca de pranchas e ganhar por isso era a situação mais próxima de uma revolução que ainda iria acontecer no surf. Em agosto de 1976, Pedro Paulo Lopes, o Pepê, e seu grande amigo Cauli Rodrigues apareceram no Waimea 5000, etapa brasileira do Circuito Mundial, no Arpoador (RJ), com um JB grande, do Jornal do Brasil, estampado no bico. Acredito ter sido o primeiro patrocínio de surf do país e um dos primeiros do mundo. Pelo que fiquei sabendo na época, Pepê e Cauli ganharam passagens e ajuda de custo para competir. Pepe venceu o evento. No ano seguinte, apareceram outros poucos ícones cariocas com logotipos em suas pranchas. Rico de Souza, com a TV Globo, Daniel Friedman, com a Brahma, Otávio Pacheco, com o Guaraná Antarctica. Todos com o mesmo tipo de acordo. Era uma revolução. Ganhar passagens e ajuda de custo para viagens não era salário mensal, mas era a primeira vez que surfistas estavam ganhando alguma coisa concreta para surfar. Expor uma marca nas pranchas e nas camisetas, e em troca viajar para competir. No embalo, lógico, surfar ondas de sonho. Comecei a procurar o meu patrocínio. Em 1978, Jajá, representante gente boa da Gledson, no Rio, me levou a São Paulo para falar com o Júlio Nascimento, gerente de marketing desta famosa marca fabricante de roupas para jovens e adultos jovens. Chegamos a uma ante-sala cheia de troféus, e o Jajá sumiu pela empresa. Coloquei minha prancha atrás da porta e sentei ao lado de um garoto mais novo que eu, com um fichário desses pretos, de colégio, no colo. Olhei os troféus e notei que eles só patrocinavam esportes de motor. Eu também sabia que tinham contratado uns skatistas. Acho que era o Luis Roberto “Formiga”, o Jun Hashimoto e o Jofa, que mais tarde se tornaria um dos melhores pilotos de vôo-livre do mundo, conhecido como Nenê Rotor. Eu poderia ser o primeiro surfista deles.
Vestia um “blazer” preto de veludo liso, que a Rádio Globo 860 AM tinha comprado pra mim, quando fui competir na África do Sul, em 76, patrocinado por eles. Em meu colo, um desses “books” grande de couro preto, que as modelos usam, cheio de reportagens minhas em revistas e jornais. O garoto sentado ao meu lado quebrou o gelo e pediu para ver meu book, perguntando o que eu fazia. Eu pedi o fichário dele e o contraste chamou a minha atenção. Ele folheava as páginas grandes do meu book, cheias de fotos minhas, coloridas, das revistas Pop, Manchete Esportiva, O Cruzeiro, do Jornal do Brasil, do jornal O Globo. Alguns poucos resultados e títulos, pois não tínhamos campeonatos em quantidade, nem muita mídia explorando o lado folclórico do surf. O fichário dele era mais “pobrinho”. Não tinha nem foto em preto e branco. Só pequenos recortes de jornais com uma repetição irritante de títulos e feitos expressivos: “Senna não perde uma corrida há 8 meses!”, “Prodígio do kart, Ayrton Senna é destaque na Europa!”. Quando ele foi chamado, eu nem tinha visto tudo, mas não precisava. Era tudo igual. Ele se levantou e disse: “Boa sorte!”. Eu levantei o rosto e respondi: “Pra você também!”.