Outro dia fui surfar no Castelinho, em Ipanema, um pico que eu adoro. As ondas são fortes, meio fechadas, mas perfeitas pra se aprender a entubar. Foi a minha escola. Como morei ali muitos anos, tenho uma relação afetiva com o lugar. Ficava eu, Rosaldo, Leal e Coelho botando pilha pra ver quem ia dropar na fechadeira da série e jogar pra dentro. Me lembrei dessa brincadeira enquanto corria ofegante pelo calçadão na direção do pico. Dava pra ver que o fundo estava ruim porque as ondas fechavam inclementes. “mas se o meu instinto estiver certo...” eu pensava. “Quando o swell tá de leste, as esquerdas correm alinhadas com cara de point break”. E foi esse o cenário que eu encontrei. Infelizmente Rosaldo, Coelho e Leal não estavam caindo. Acho que nem freqüentam mais o pico. Tinha só três caras no outside, mas eu não conhecia nenhum deles. O mar tava liso e as ondas explodiam na areia rasa. Tubos secos. Me belisca...
Peguei uma. Peguei duas. Peguei três. Três tubos. Não estava acreditando nesse final de tarde sem ninguém. Na quarta, uma fechadona gigante da série, virei a prancha e remei com um sorriso no rosto, como se ainda pudesse ouvir os brothers botando pilha. “Vai!!! Não pode amarelar!!! Bota pra dentro!!!”. Fui, não amarelei, botei pra dentro. E corri até ela explodir e me deixar que nem bife a milanesa numa máquina de lavar. Mas quando eu subi, a prancha tava partida em dois pedaços. Saí desconsolado. E fiquei olhando as ondas perfeitas até o anoitecer. Voltei me arrastando pra casa num misto de tristeza e orgulho.
Cumpri com meu papel de botar pra baixo e a prancha quebrou. Só se molha quem sai na chuva. Só quebra a prancha quem se joga. Mas o engraçado foi perceber que não era bem isso que as pessoas enxergavam quando me viam caminhando com a prancha partida debaixo do braço. Percebi as mais diferentes reações. Uma senhora me olhou de cima a baixo com cara de reprovação, como quem diz: “Você não tem mais idade pra essas coisas. Veja só o que aprontou”. Na seqüência, um ambulante afirmou meio rindo: “Essa prancha deve ser muito fraca, ao tem quase onda...”, como se eu fosse o maior bundão da parada. Dois gringos apontaram na minha direção e comentavam algo rindo. Não ouvi as palavras, mas posso bem imaginar...
Ninguém viu meus tubos. Ninguém nem sabe que eu sei surfar. Eles só enxergaram o fracassado que levou uma bela lição da natureza. Mas surfista não pensa assim. Só os leigos. Surfista sabe que pra se quebrar uma prancha é preciso uma manobra radical ou uma situação limite. Ou uma onda Power, como a do Castelinho. Nesse contexto, a prancha quebrada passa a ser quase um troféu. Testemunha de sua coragem, de que pagou pra ver. Ninguém tem prazer em ver sua prancha se despedaçando, mas surfista algum volta pra casa se sentindo menor porque a prancha foi pro beleléu. Faz parte. A gente ama aquele toco mágico de fibra, mas sabe que não pode se apegar. Um dia ela parte, literalmente.
Minha história mais desastrosa com prancha foi em Bali, na década de 90. Outside Corner sem uma alma no pico. Julio entrou primeiro, Gui na seqüência. E eu, maravilhado com a luz, com as ondas, com o astral de surfar tubos incríveis com mais dois apenas, dei mole e pulei na hora errada. A água foi desaparecendo debaixo da minha prancha até ela encalhar completamente no coral. Segurei na borda para tentar sair daquela situação miserável e a força da água amassou meus dedos na pedra. Quando finalmente me livrei daquela zona do agrião, estava todo sangrando e com o fundo da minha prancha como se tivesse sido mordida por um tubarão. Cheguei no outside e levantei as mãos pra mostrar o sangue escorrendo. E depois mostrei o fundo da prancha. Os caras ficaram atônitos, não acreditaram no estrago.
Mas o mar tava tão bom que nem liguei. O problema é que as “dentadas” no fundo deixaram a prancha bem lenta. E pra piorar, na terceira onda uma parte do fundo desencapou levando a quilha esquerda. Caraça! Voltei pro pico e mostrei o novo estrago. Metade da prancha estava na espuma de poliuretano e ela agora só tinha duas quilhas. Os caras ficaram chocados. Continuei surfando assim mesmo, fazendo milagre pra ela não derrapar. Qualquer coisa menos sair do mar. Mas aquele não era mesmo meu dia. Os deuses de Bali já tinham dado seu veredicto, eu é que me fingia de desentendido. Até que não teve mais jeito. Dropei e na cavada a prancha partiu ao meio. Senti a prancha se dividindo debaixo dos meus pés. O bico se afastando da rabeta. Minha perna abrindo. Bizarro! Nadei, paguei aquele pecado básico pra sair do mar pela bancada e ouvi, de cima do penhasco, a zoação dos balineses, que urravam. Mas diferente dos leigos de Ipanema, a molecada riu comigo e não de mim. Sabem que mais cedo ou mais tarde também pagarão seus pecados. Afinal, basta ser surfista que essas coisas acontecem.