“Você mudou minha vida”, diz Belmiro Mendes, um dos mais respeitados surfistas da Ilha da Madeira. “Estou tão feliz por viajar com surfistas que fazem algo não somente para si mesmos”. Sua sincera confissão me chatearia muito se eu não estivesse tão incrivelmente exausto. Acabamos de aterrissar no porto tropical de São Miguel, na Ilha de Açores, e talvez não dormimos há dias. Tropeçando nesse jardim botânico de luxo, com nascentes e cachoeiras de água fresca, toda nossa equipe desmaia ali mesmo, na grama. A fadiga é o nosso travesseiro.
Fecho os olhos. Meio sonhando e meio acordado, observo a silhueta de uma gigantesca baleia Cachalote. Sim, eu sei que isso parece brega. O Dave com suas baleias. Eu suportarei as piadas. Mas depois de tudo pelo que passamos, ainda sonho com os cetáceos (mamíferos marinhos). Fecho os olhos e vejo baleias: os maiores cérebros do planeta Terra; mais de 80 anos de vida; grupos sociais que trabalham juntos para proteger os doentes e desenvolver os mais novos. Tudo isso, e ainda há culturas nesse planeta que as massacram. Por mais exausto que esteja, às vezes simplesmente não consigo dormir.
Um golfinho te olhará bem nos olhos. Nossa equipe passou por isso no primeiro dia da viagem, deslizando ao lado do nosso barco para observar as baleias da Ilha da Madeira, e nadando até um cardume de baleias curiosas que se juntou à nossa embarcação. O terror da caça terminou aqui. Substituído pelo crescente turismo de observação de baleias, do mesmo modo que aconteceu na Austrália. É uma maneira adequada para o grupo de surfistas escolhidos, artistas e ativistas, começar esta trip. Uma chance para sentir como realmente estamos conectados com estes mamíferos aquáticos. A próxima fase da nossa jornada é menos agradável.
Este é o terceiro ano que participo da assembléia anual da Comissão Baleeira Internacional (CBI), junto com representantes do grupo Surfistas Pelos Cetáceos (S4C). E por ser construído a partir de mentiras, serei bem claro: a convenção é uma fraude. Esta convenção carece de funcionamento. As nações baleeiras do mundo se reúnem para especificar os números destes grandes mamíferos que matarão por lucro, em nome da “pesquisa”. Eles se encontram atrás de portas fechadas. A mídia não é autorizada a entrar. E grupos como os nossos, com certeza, não são bem-vindos. Dê uma olhada na segurança ─ é bom saber que eles têm medo de nós. Bom saber que são capazes de sentir alguma coisa. Em um elevador de hotel, dois membros da nossa equipe testemunharam dois delegados da comissão baleeira do Japão acompanhados de um delegado da Nigéria. Agora, isto é estranho porque a Nigéria não tem costa nenhuma. Por que estariam ali?
“Você está com este senhor?”, eles perguntaram ao representativo nigeriano.
Um estranho silêncio.
Os delegados japoneses desviam seus olhares. Todos saem no próximo andar.
De novo: falarei de forma simples. Enquanto mais nações não-baleeiras aparecem para votar no show de marionetes anual da CBI, nações baleeiras corruptas precisam de todos os votos que puderem comprar. Caça de baleias é um grande negócio ─ até na Nigéria.
Protestar nestas convenções não é algo que se possa curtir. Mas quantos horrores acontecem neste mundo meramente porque ninguém se voluntaria para pará-los? Caçar baleias não será um deles. Então estamos aqui. É reconfortante ter comigo outros indivíduos que pensam como eu, e com espíritos fortes. De artistas como Howie Cook e Chris Del Moro pintando murais de baleia e falando com grupos pela cidade, até toda a comunidade de surf reunindo-se para a pré-estréia de Minds In The Water, há um grupo dedicado de talentosas mentes a favor desta causa.
Acompanhamos a pré-estréia do documentário The Cove e ficamos impressionados com o filme. Segurávamos rádios. Protestamos na frente da convenção e conhecemos autoridades de parques e vida selvagem. É um redemoinho de atividade exaustivo. Não há tempo para surfar. Quando estas reuniões terminam, as nações baleeiras voltam a colher estes mamíferos aparentados do mar ─ quebrando até as orientações corruptas que estabeleceram para si mesmas. Mas mesmo no alto mar, eles não ficarão incontestados.
“Se a inteligência é definida pela habilidade de viver em harmonia com o mundo à sua volta”, diz o capitão do Sea Shepherd, Paul Watson, “então os humanos são a espécie mais burra do mundo”. Watson, um verdadeiro guerreiro contra a indústria baleeira, estava conosco na Madeira também. Conforme as reuniões acabavam, ele retornava ao mar para enfrentar os baleeiros neste ato horripilante. Se aprendermos algo do seu exemplo, é que simplesmente aparecer por lá não está nem perto do suficiente. Passamos nossas noites discutindo táticas, mas também entendemos que isto não é uma guerra, mas sim uma jornada, uma discussão, uma trilha. E, claro, quando tudo acaba, nós tropeçamos cidade afora para a completa beleza de tudo, dançando até o nascer do sol nos porões escuros e esfumaçados da Ilha da Madeira... E quase perdendo nosso vôo para Açores, de onde fugimos para descomprimir da loucura de declarar guerra contra estas burocracias doentes. O vôo atrasa. Acabamos dormindo em uma sala de aeroporto e acordamos no paraíso.
Deitado na grama, ouço as ondas quebrando. O vento terral sussurra contra as palmeiras. Belmiro fala sobre seus planos para conscientizar a comunidade natal na Ilha da Madeira. Estou exausto, e não consigo dormir. Pegamos nossas pranchas e partimos para o mar.
Logo Howie está criando outro mural de baleias nas pedras. As garotas combinam uma expedição para observá-las ao cair da tarde. Belmiro, Del Moro e eu surfamos abaixo de cadeias montanhosas pré-históricas que desafiam noções de tempo. E naquela tarde estamos mais uma vez no mar, encontrando um grupo de Cachalotes. Dois adultos e um filhote flutuam até a superfície em águas cristalinas, respirando lentamente, e mal percebendo nossa chegada. Nossa equipe está em silêncio, admirados por seus simples tamanhos. Pelo ritmo gigantesco e constante de respiração. Criaturas que equilibram suas vidas entre socializar, cantarolar, caçar, reproduzir e surfar. Parece familiar? Se apenas pudéssemos alcançar a “vida em harmonia com o meio-ambiente”, seríamos dignos de vagar lado a lado com a nação dos cetáceos.
Retornamos à terra firme. Nossa jornada terminou, mas nos penduramos por mais alguns momentos. Há uma relação única entre surfistas e cetáceos, difícil de achar em qualquer outro lugar do mundo. Você consegue imaginar um membro de alguma tribo africana correndo lado a lado com um leão selvagem? De mitologias antigas às notícias espetaculares dos dias de hoje, contos de baleias resgatando humanos da morte certa sempre existiram. Agora temos a chance de devolver o favor.
Dizendo adeus, meus olhos se enchem de lágrimas. Eu choro muito, até em público. Por mim tudo bem. Saindo das ilhas sozinho, não estou tão sozinho. A comunidade do surf não vai deixar esta chacina passar incontestada. Este é o nosso momento da história. Vejo o futuro refletido nos olhos dos jovens surfistas em todo o mundo, e estou otimista. Apesar de nos sentirmos cansados, às vezes não conseguimos dormir.
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PELA VIDA
QUEM SÃO AS ONGS SEA SHEPHERD E S4C A atitude mais extrema que pode ser adotada por uma organização não governamental é de caráter combativo. Quando apenas freqüentar cadeiras de comissões e congressos para defender uma causa já não tem mais sentido, algumas se levantam e entram em campo. A norte-americana
Sea Shepherd, uma das entidades fiscalizadoras de ecossistemas marinhos mais ativistas, é um exemplo claro.
Com exatos trinta anos, a ONG foi fundada ─ e até hoje é dirigida ─ pelo ambientalista canadense Paul Watson. Ainda nos anos 80, ganhou notoriedade ao promover uma ação em que centenas de focas do Golfo de São Lourenço, no Canadá, foram pintadas de azul, para que suas peles perdessem o valor comercial e esses animais deixassem de ser alvo da caça humana predatória. Na década seguinte, Watson guiou uma equipe até o norte da Noruega, onde tramaram o afundamento de um navio baleeiro local. Alguns meses depois, os “piratas do bem” já estavam na ilha de Newfoundland, Canadá, atacando um navio de pesca cubano com bombas de fedor e cortando sua covarde rede de arrasto. Simultaneamente, ignoravam vozes de prisão e despistavam as embarcações do governo daquele país.
Essas são apenas algumas entre as inúmeras façanhas promovidas pela Sea Shepherd que, pela ousadia sem limites, já passou até por cima de leis para fazer valer a pena sua existência como organização independente.
E nem os vários dias que o capitão Watson passou atrás das grades foram capazes de inibir a inauguração da filial nacional. Depois de sete anos de atuação efetiva no pelotão de frente da Sea Shepherd internacional, os primos Daniel Vairo e Alexandre Castro finalmente abriram a versão brasileira da entidade, em 1999. “
Temos total autonomia financeira e administrativa da matriz norte-americana”, garante Daniel, que nesse tempo já ajudou a salvar muitas vidas no mar. Em 2000, por exemplo, voluntários da Sea Shepherd Brasil coordenaram uma operação de resgate e salvamento de animais depois que 300 mil galões de óleo foram derramados acidentalmente na baía de Guanabara, no Rio de Janeiro.
Hoje, seu maior desafio é desvincular a imagem assassina que foi atribuída aos tubarões e acabar com a matança desenfreada desses animais pela costa brasileira. “
No ano passado, no extremo sul do país, foram apreendidas 3,3 toneladas de barbatanas, o que daria em torno de 36 mil tubarões abatidos”, calcula Cristiano Pacheco, diretor jurídico voluntário da Sea Shepherd Brasil. Em tempo: o mercado asiático tem interesse nas nadadeiras de tubarões para fins culinários e farmacêuticos.
“
Já surfei perto dos tubarões em Puerto Escondido, e sei que eles não gostam de carne humana. Acontece que são bichos pré-históricos e curiosos, mas que têm importância fundamental na cadeia alimentar marinha”, finaliza Cristiano.
A Sea Shepherd Brasil parece mesmo ter aprendido a lição da irmã mais velha. Com ações ágeis e campanhas boladas conforme as necessidades, já obteve bons resultados. Em 2008, depois de ter aberto o primeiro processo do país contra a pesca predatória, a ONG conseguiu a condenação de uma empresa pesqueira do sul do país. Além disso, oferece cursos de salvamento de aves e animais marinhos em caso de acidentes, e constantemente articula debates sobre temas ambientais diverso. Uma dessas discussões levou, também em 2008, à criação do Santuário de Baleias e Golfinhos que proíbe a caça desses animais por todo o Atlântico entre o Brasil e a África.
Mas a Sea Shepherd não está sozinha. Em 2004, outra ONG de cunho ativista foi criada em defesa dos mesmos animais: a
Surfers for Cetaceans (Surfistas pelos Cetáceos), ou S4C ─ cetáceos são mamíferos marinhos como o golfinho e a baleia. A iniciativa partiu do surfista Dave Rastovich, que nasceu na Nova Zelândia e foi criado na Austrália, bem próximo da vida marítima. Hoje, como um dos principais militantes da S4C, ele quer chamar a atenção de surfistas e da mídia especializada para comportamentos repugnantes que perduram nos oceanos, como a caça às baleias e a matança dos golfinhos. “
A experiência de pegar ondas ao lado dos cetáceos me levou a pensar sobre a delicada relação que pode existir entre diferentes formas de vida”, explica Rasta.
Além dele, o artista Howie Cook e o surfista Chris Del Moro abraçaram a causa da S4C. E, juntos, os três vêm promovendo verdadeiras intervenções do bem pelos mares. “
Estamos dispostos a espalhar o prazer de dividir as ondas com o ‘povo do mar’”, enfatiza Rasta, que entre outubro e novembro do ano passado, passou 36 dias remando pela costa australiana, numa viagem batizada de Transparent Sea (Mar Transparente). Ao todo, foram 700 km entre Byron Bay e Bondi Beach, à bordo de uma embarcação simples, com o objetivo de acompanhar a migração das baleias Jubartes para o sul do globo. De vez em quando, uma se enrosca em redes de pesca pelo caminho.
Em 2005, Rasta e a S4C participaram in loco da produção do documentário
The Cove. Numa operação secreta, o filme conseguiu registrar a matança dos golfinhos de Taiji, no Japão. Mais de 2000 desses cetáceos são mortos anualmente nessa cerimônia sombria, um massacre que é justificado simplesmente pela “tradição”.
The Cove estreou em julho do ano passado, no Sundance Festival, nos Estados Unidos, um dos mais importantes festivais do cinema independente. E ganhou o
Prêmio da Audiência.
A S4C pode não ter afundado nenhum navio, mas, à sua maneira, também alerta para uma crueldade que infelizmente ainda é real.