Da janela do avião via-se um mar que não acabava mais. Horas e horas voando num cacete de quase 1.000 km/h, com água e mais água passando por baixo, e nada daquele mar acabar. “Será que o mundo todo virou água? Será que uma hora vai ter mesmo uma terrinha aí pra gente pousar?”, brincando comigo mesmo, eu me questionava.
Era dezembro de 1980 e logo de madrugada havíamos decolado de Santiago do Chile. Muitas horas depois pousáramos na Ilha de Páscoa. Eu descera pra tomar um ar e pensar se ficaria uns dias por ali, porém, ao olhar em torno vi uma ilha árida, pedregulhenta, desolada, praticamente sem árvores e cujo mato rasteiro estava ressequido devido ao vento salino que parecia incessantemente fustigar aquela terra monotonamente ondulada, que se acabava em penhascos escuros no mar bravio e desconjuntado.
Eu nunca ouvira falar em surf nessa ilha e nem prancha eu tinha, pois pretendia comprar uma na Austrália. Um outro avião só escalaria ali na semana seguinte. Então, apesar de querer ver de perto aquelas enormes figuras de pedra, quer saber? Tô fora!, pensei, não vou trocar uns dias no tão almejado Tahiti por esta ilha seca.
Então, recurvando-me, recebi no pescoço o colar de flores murchas que a nativa seca de olhar sofrido me ofereceu e tornei a embarcar na máquina voadora.
— Desculpa, moça — pensei —, mas estou com o hula-hula verdadeiro na cabeça e não é bem isso o que rola aqui. Aqui a coisa ta meio triste, com uma alegria meio na forçação de barra. Não dá pra ser um povo muito feliz nesta aridez lascada aqui. Sabe como é, moça, eu estou aqui de turista, mas turista mesmo, sabe, só de passagem e sem disposição para nada que não seja do meu agrado, é um direito merecido que ora me dou, e venho de longe porque estou atrás de uma noite quente e úmida, numa praia de areia fofa, onde a maresia voeja mansa e brilha na luz do luar, com aquelas moças tipo quadros do Paul Gaughin dançando ordenadas de coroa de flores na cabeça, cinturinhas de violão ondulando com suave energia, suas peles refletindo as cores quentes das tochas de fogo, aquelas pernas brilhantemente bronzeadas e cheirosas escapando pra fora dos vestidos farfalhantes de folha de coqueiro, tornozeleiras de conchinhas brancas que emitem sons ritmados ao chacoalhar, violinha tocando solta, aquela dança simbolizando umas histórias folclóricas simples e românticas do tipo moça que ama o moço e o moço que ama a moça e eles querem mais é se abraçar e beijar e o mundo que se exploda, e sorrisos e mais sorrisos doces de satisfação com a vida prazenteira. Hula-hula, hula-hula! Uma silenciosa nativa que me pegasse pela mão e me levasse para uma esteira, onde de mim tirasse o que eu não sabia que tinha para dar.
Acho que eu vira muitos filmes antigos de Hollywood a respeito, acho que lera muito Jack London, Joseph Conrad, Sommerset Maughan, escritores que viveram naquelas ilhas do Pacífico quando delas ainda emanava o frescor da virgindade, época em que ao nativo dali bastava o que aquela natureza generosa tinha para oferecer e suas mãos pegar.
Algumas coisas na vida a gente tem que ver com os próprios olhos, algumas coisas a gente decide que temos que vivê-las com o próprio corpo.
— Tahiti, aqui vou eu!
Mais mar, mais um mundão de mar que se estendia até os longínquos horizontes que nos rodeavam. O mundo era uma imensa bola d’água.
O estranho de voar muitas horas seguidas do leste para o oeste é que o Sol custa a se mexer. Parece que o seu curso está mais lento e o dia custa a passar. E na verdade custa mesmo, já que acompanhamos o movimento do Sol como se fugíssemos da noite que inexoravelmente se aproxima de nossas costas. Mas o Sol nos alcança e passa. Calculei que precisaríamos voar a uns 2.000 km/h para empatar com ele, e aí as horas não passariam.
E foi assim que ao finalzinho da tarde o piloto enfim anunciou que chegávamos ao Tahiti. Muito gentil, ele nos presenteou com um sobrevôo ao redor da ilha. Uma ilha que à essas horas do ocaso mostrava-se escura, quase negra, montanhosa, com picos escarpados e afiados, sulcada de profundos vales de mata úmida e densa. Uma ilha silenciosa e imponente, dona de uma majestade tranqüila.
Protegidas por espumantes anéis de coral, lagoas plácidas e translúcidas cercavam partes da ilha, e nela alguns barcos navegava, na certa pescadores em sua faina diária.
Olhar essa cena impactante, para mim, foi como começar dar formas a um sonho até então difuso e encantador. Senti uma espécie de medo; aquela angústia que sentimos quando estamos preste a realizar um delicioso sonho por muito tempo sonhado; senti medo de que a realidade não correspondesse à beleza e perfeição do sonho, e por momentos tive até reflexos de voltar atrás para não desfazê-lo.
Mas o medo logo passou e o que tomou conta de mim foi a vontade de mergulhar imediatamente nesse sonho, fosse ele qual fosse, e o que me sobreveio foi um aperto na garganta, um conveniente aperto, pois algo teria que conter a imensa efervescência que passou a borbulhar em meu peito.
— Tahiti, aqui vou eu! Eu nasci pra isso, eu sei!
Foi um gostoso impacto sair do frio ar-condicionado do avião e inflar meus pulmões com o ar quente e úmido da ilha. Só isso, de cara, já nos acalma. Nossos brônquios se dilatam, nossas veias afloram sobre a pele, e quase que imediatamente nosso metabolismo vai assumindo um ritmo mais lento, você vai ficando mais na base do taiquirisi.
Observando a tarde que findava, embevecido com um céu de pinceladas alaranjadas, que em degradê iam para o azul, azul escuro e negro, fui descendo a escada do avião. E nessas, logo ao pisar em terra, recebi de uma moça um sorriso alegre e um perfumado colar de flores.
Se alguém puder imaginar melhores boas-vidas, que fique com elas, pois creio que nem São Pedro bolou um jeito melhor para nos receber no céu.
A moça do colar me falou umas coisas ali que não entendi nada, mas o tom, o ritmo, e o modo cantado de sua expressão já indicavam que o povo que acabou se exprimindo assim levava uma vida boa. Nada de palavras truncadas, sons engolidos e nervosos como na língua alemã ou japonesa, de gente que fala pra dentro e aos quais e expressar é um custo, um tormento. O tahitiano se expressa naturalmente, parece que facilmente Poe pra fora o que sente.
— Merci, mademoiselle, merci.
A grande vantagem da colonização francesa sobre a norte-americana, ou seja, a do Tahiti sobre a do Hawaii, é que a francesa é mais respeitadora da cultura local, enquanto que a norte-americana passa uma borracha por cima para apagar tudo e impor a sua, com shopping-centers, Mc Donald’s e caminhonetonas. Daí que o aeroporto de Papeete era pequeno, tinha uma arquitetura marcadamente polinésia, não tinha ar-condicionado, só preguiçosos ventiladores de teto, e as coisas eram gostosamente meio atrapalhadas e sem pressa, fazendo que não sentíssemos a sensação de que somos um objeto numa linha de montagem, cujo objetivo é te despachar dali o mais rápido possível de mala e cuia dentro de um táxi.
— Taxista, quero um hotelzinho barato e perto do mar!
— Oui, oui.
— E como é que se fala moça bonita em tahitiano?
— Moça é vahine. O resto você que se vire, seu mané folgado — falou isso u algo parecido.
— Beleza. E tem onda por aqui? O pessoal pega onda?
— Muito pouco.
— Pois é, nunca vi uma reportagem falando sobre o surf daqui, mesmo assim amanhã vou alugar um carrinho aí pra dar uma volta na ilha e ver se acho umas ondas. E Moorea, tem onda?
— Não sei. Mas a ilha é muito linda, ótimo para mergulho. Vê se vai logo pra lá e mergulha bem fundo.
Surfei umas ondinhas com prancha emprestada de um moleque, a quem dei carona no jipinho alugado. Ondas de recife, que davam um drop legal, mas que acabavam logo. O lugar, porém, uma pequena baía abrigada por um coqueiral, já valia pelo visual.
Realmente, pouco se falava de surf por lá. Teahupoo, então, nem ouvi esse nome, já que ela seria primeiro surfada por cinco anos depois, pelo local Thierry Vernaudon. Talvez tenha sido sorte minha, pois eu bem que poderia ter deixado mais partes de mim naquelas ilhas.
E estas recordações, e mas outras, algumas partes de mim que lá ficaram, já me bastam.