“Não procure respostas que não podem ser dadas porque não seria capaz de vivê-las.
E a questão é viver tudo. Viva as perguntas agora. Talvez assim, gradualmente, você sem perceber, viverá a resposta num dia distante.”Rainer Maria Rilke (1875 – 1926)
Tudo indicava que seria uma carona como outra qualquer. Ir à praia, surfar, limpar bem os pés para entrar no carro e voltar conversando sobre nossas infindáveis fantasias em torno do surfe.
Com 16 anos, espremido no banco de trás, eu ouvia mais que falava e absorvia o que dava.
Passamos por um campeonato no Postinho e paramos pra assistir um pouco.
Meus novos ídolos estavam disputando as semifinais da categoria Júnior: Fedelho, Marquinhos ADN, Serginho, Guto, Beto e a nata do surfe da Barra no meio dos anos 80. Testemunhar aquilo me bastava.
Alexandre olhou pra mim e perguntou com naturalidade, “Bruno, por que você não se inscreveu?”.
Dei de ombros, um pouco em choque com a pergunta.
O que faria eu no meio daquelas feras?
Sem permitir que me munisse de muitas desculpas, Alexandre se adiantou, “no próximo, você me avisa que eu pago sua inscrição...”.
Naquele exato momento, minha vida mudou completamente.
Alexandre fazia as melhores capas de prancha do mercado, Capas Avant Garde, sofisticadas como o nome, e via o surfe duma forma totalmente diferente da minha ─ profissional.
Tudo pro Alexandre era sério: surfe, skate, música, sua faculdade, sua família.
Eu levava tudo na brincadeira.
Aos poucos fui me familiarizando com o que ficava ao redor do surfe, revistas, filmes, campeonatos, surfistas.
Pela primeira vez, vi alguém que não saía recortando as revistas e colando na parede ou nos cadernos. Alexandre era assinante da Surfer e guardava cuidadosamente cada uma delas, não apenas isso, sabia até a seção de cartas de cor e salteado.
Gostava de citar frases de efeito do Shaun Thomsom, Tom Curren e Rabbit.
Folhear revistas pra mim era um mero exercício estético, ver fotos, estudá-las e nada muito além disso.
Inglês era uma língua complicada demais e só de pensar em ler aquele calhamaço, já me cansava.
Subitamente, aquilo fazia sentido e de alguma forma me ajudava bem mais do que apenas surfar bem ou mal.
Foi graças a ele que minha mãe permitiu que viajasse para a Guarda em 85 (ou 86), eu, ele e a namorada.
Segundo ele, na Guarda era tudo barato, ficaríamos numa casinha de pescador um mês inteiro, comendo PFs e surfando até não agüentar mais.
Chegando lá, sua namorada ficou horrorizada com a simplicidade e higiene das casinhas, nos hospedamos no primeiro hotel da Guarda, recém-inaugurado, ficamos ali por poucos dias, a grana acabou, a paciência da namorada dele também, foram embora os dois e eu fiquei lá o resto do mês vivendo de favor, sobras e quilos de bananada.
Uma experiência pra toda vida.
O tempo passou e nos afastou, todo final de ano recebia um cartãozinho de natal assinado por ele.
Às vezes ligava e perguntava se eu estava estudando, por que não?, surfe era passageiro, uma boa formação é fundamental, dizia ele.
Alexandre tinha uma voz grave e impostada, de locutor de telejornal, vocabulário vasto e uma preocupação genuína com meu futuro. Ele já tinha se formado, estava muito bem empregado e noivara com a namorada de garoto, já não surfava como antes.
Um dia os cartões deixaram de chegar.
Cláudio, um amigo em comum que também afastou-se, ligou pra dizer que Alexandre não estava bem, informou o hospital e número do quarto.
Através do surfe fazemos muitas amizades que vêm e vão como ondas, no balanço do mar.
Eu tive o prazer e privilégio de ter um amigo de verdade durante alguns anos importantes na minha formação como surfista e como homem.
Nos seus últimos momentos, Alexandre confessou a sua namorada que deveria ter surfado mais, assistido mais filmes de surfe, lido mais revistas de surfe.
Por uma dessas coincidências cósmicas, Alexandre e Andy Irons foram enterrados no mesmo dia.
Duas vidas diametralmente distantes e opostas.
Lá em cima decorei o texto com um trecho do livro de Rilke, Cartas a um jovem poeta, dez cartas que escreveu a um rapaz cheio de dúvidas sobre poesia ─ e a vida.
Alexandre foi meio Rilke pra mim.