Bons samaritanos ou cínicos? Há beleza de espírito e talvez uma simples exploração em uma reportagem da revista americana Surfing. Entre páginas e páginas de anúncios com surfistas ricos sorrindo, bundas e todo tipo dos caríssimos acessórios e equipamentos, há uma surf trip diferente: as ondas perfeitas do lugar mais miserável do planeta (último lugar no índice de qualidade de vida medido pela ONU). A Líberia sofreu com uma gerra civil interminável entre 1989 e 2003 que exterminou 250 mil pessoas. Hoje o país é um amontoado de lixo, "banheiros naturais" como algumas praias, pouquíssima comida e condições mínimas de vida e milhares de mutilados da guerra. Mesmo assim há alegria e pureza nas crianças que descobrem o surf graças aos americanos com grana que conseguem ir pra lá usufruir de esquerdas magníficas.
Um convite às crianças armadas que garantiam a segurança da expedição dos americanos em uma praia é emblemática. "De repente tivemos uma idéia. 'Vocês querem tentar?'", Dan perguntou a um garoto chamado Mustafá... Observando as crianças surfando, eu lembrei algo que Dorothy (freira que cuida como guerreira de um orfanato na Libéria) disse antes no orfanato. "Vocês que chegam e vão, vocês que interagem e compartilham com as pessoas e vêem a verdade, serão vocês e muitos outros como vocês que farão um mundo melhor".
O Dan no caso é Dan Malloy, o famoso ex-pró e videomaker de sucesso. Ora, que mundo melhor esses surfistas americanos poderão dar às crianças da Libéria? Uma session inesquecível de surf? Um sonho raro numa vida infernal?
De onde vêm as armas que destroem o mundo em inúmeras guerras? Por que a África e sua falta de riquezas naturais (como petróleo) é um mundo esquecido e ignorado pelo governo mais poderoso e rico do mundo?
Claro que não se trata de comparar a boa praça Malloy e sua trupe com a corja assasina predadora do governo americano. Mas espero que a Libéria não seja apenas mais um pico exótico de ondas perfeitas que ajudará Malloy a ficar um pouquinho mais rico em seu próximo filme. Espero que a Libéria não seja mostrada apenas com imagens de suas ondas de desenho animado e crianças sorrindo em cima de pranchas como mostrou a reportagem da Surfing. Por que não há nenhuma foto da miséria e desumanidade dessa África esquecida na revista?
Porque o surf é cínico e alienado. Só se interessa pela beleza e prazer. Porque os humanos miseráveis ─ que recebem a graça e bondade de um gringo que lhes concede o privilégio de surfar ─ são apenas figuras exóticas.
Porque a maioria do mundo que tem condições econômicas e políticas não está nem aí para essas pessoas que sobrevivem quase como bichos. O mundo com poder só interessa por riquezas, sejam elas poços de petróleo ou ondas perfeitas.
O que devia nos fazer regressar a uma onda clássica não deveriam ser apenas as paredes de tubos de sonho. Deveriam ser os seres humanos. As pessoas que ficaram lá. As pessoas que não sairão de lá jamais, porque não podem.
Claro que há exceções, como os americanos que melhoraram as condições das comunidades de Grajagan e das Mentawai, por exemplo. Como pessoal que apóia o projeto de surf da favela, no Arpoador, Rio. Como alguns donos de escolinhas de surf no Guarujá que dão chances às crianças carentes.
Mas são exceções, não a regra. Há pouco tempo, ao entrevistar um carroceiro para um texto sobre trabalhadores das ruas, ele perguntou o que ele ia ganhar com isso. Nada em se tratando do dinheiro que eu receberia pelo artigo. Sim, eu contaria sua história triste, alertaria a sociedade... mas aquele carroceiro permaneceria em sua miséria eterna. Me senti apenas mais um explorador da miséria ao lado.
O que ganham os liberianos com esse texto na Surfing? Um belo momento de felicidade mas eles que tratem de tentar prosseguir com o surf. E depois? Bonito será se Malloy voltar ou estabelecer por lá um projeto ligado ao surf junto do orfanato da missionária Dorothy. Triste será se o resultado for apenas um ganho em vendas de uma revista poderosa e de mais um filme de um videomaker bem-sucedido.
O surf poderia ser muito mais do que carregam os surfistas privilegiados em viajar o mundo atrás de ondas perfeitas. Poderia se os surfistas olhassem além das ondas.
A vida não é transparente e cristalina como as ondas de azuis e verdes surreais dos paraísos do surf.
Paraísos só do surf.