EVOLUÇÃO × EDUCAÇÃO



Espero estar errado, mas fiquei preocupado com uma antiga visão do futuro que, parece, chegou mesmo para ficar. Em algum momento lá atrás, nos anos 70, imaginei uma prancha com um motor embaixo, suficiente para melhorar a minha remada. Vários surfistas devem ter imaginado o mesmo. Cada um com o seu motivo. Se você surfasse regularmente um pico como Rincon, na Califórnia, depois da segunda ou terceira onda longa num dia com 4 a 6 pés, sonharia com um motorzinho desse. Caindo lá, eu já contei mais de 400 reamadas duplas, voltando do final de uma onda até o pico. Para surfar cinco ondas boas, duas mil remadas duplas (quatro mil braçadas, direita e esquerda). Em Haleiwa, no Hawaii, acima de 6 a 8 opes, a correnteza que te leva para baixo do pico é animal. Você rema a caída inteira, sem descanso. Ainda, tinha uma onda linda e mística no South Shore de Maui chamada Maalaea, apelidada de "trem de carga", que povoava a imaginação de todos por ser um pouco rápida demais para ser surfada. Num dia grande, era fácil imaginar um motorzinho no fundo da prancha pra te ajudar a fazer a onda toda.

Nada contra remar. Ao contrário ─ surfistas devem ter um dos mais desenvolvidos sistemas respiratórios e de circulação de sangue, entre as pessoas normais. Abre o apetite, desenvolve vários feixes de músculos e é uma parte importante do ritual do surf.

Quem me conhece ou acompanha os meus textos, sabe que eu sou um cara otimista e positivo. Também me considero "cabeça aberta", tentando perceber o mundo com uma visão 360 graus, mas a perspectiva de um cara sem educação ou meio truculento (ou os dois) em cima de uma prancha com um motor que proporciona uma remada três a quatro vezes mais rápida do que uma remada normal me assustou.

E é isso o que promete uma invenção patenteada recentemente sob o nome de WaveJet e prevista para entrar com tudo no mercado americano em 2012. Na época em que eu imaginei o tal motorzinho, o crowd não era tão nervoso. Dentro d'água, apenas as pranchinhas e uns poucos longboards. No meio dos anos 80, junto com o aparecimento dos bodyboards e pés de pato, o surf foi se popularizando e os longboards começaram a voltar com tudo. No início dos anos 90 apareceu o tow-in que, devagarzinho, não para de crescer. Precisando de menos vento que o windsurf, o kitesurf já disputa alguns picos e também se populariza mundo afora. Praticamente junto com o kite apareceu o stand-up paddle, ou simplesmente SUP, que experimenta um crescimento surpreendente para onde se olha.

Então, para quem começou a surfar nos anos 60 ou 70 do século XX, a primeira década do século XXI parece uma Torre de Babel aquática pronta para explodir em alguns lugares. Às vezes, quando a gente escreve, um pequeno exagero é necessário para chamar a atenção do leitor ou para deixar impresso de uma maneira mais contundente um argumento ou uma imagem. Pode até ser o meu caso aqui, mas visualize comigo ─ você perde a hora e acorda um pouquinho mais tarde do que o planejado numa manhã que prometia, desde o dia anterior, ondas de 4 a 6 pés, com séries maiores, e ótimas condições no seu pico favorito. Chega correndo na beira da água, com o cabelo desarrumado, como se tivesse caído da cama, dá uma raspadinha na parafina, nem se alonga e entra. Ainda tem pouca gente no pico. Uns dez surfistas de pranchinha, dois bodyboarders e um longboarder. Duas duplas de tow-in, que parecem ser principiantes, estão meio perto, no pico do lado. São 7 da manhã. Você faz valer a sua experiência e já pega logo duas ondas boas em meia hora, mas, quando termina a sua segunda onda, sai do lado de três surfistas entrando no canal. Olha para a areia e vê dois grupos ─ um com três surfistas de pranchinha e um longboarder se alongando e outro chegando com três surfistas carregando um remo e um SUP cada um. Você vira a cabeça para o horizonte e começa a remar, um pouco mais frenético. Você fica puto de ter ficado acordado até mais tarde na noite anterior e, num movimento masoquista, vira a cabeça de volta para a praia e olha na calçada dois carros chegando com pranchas em cima. Dá pra ver, mesmo de longe, que tem umas seis a oito pranchas, entre pranchinhas, longs e SUPs.

Mais uma dupla de tow-in vem chegando, enquanto um dos outros dois pilotos, por inexperiência, joga o seu parceiro no meio do pico onde você está. Dois caras berram, o piloto pede desculpa levantando a mão, mas tem que entrar perto da galera para resgatar o parceiro.  Você se posiciona lá fora e pensa, já meio pilhado: "A próxima que vier é minha". Olha para o horizonte em busca de uma série e nota uma brisa de vento vindo da esquerda, começando a mexer a superfície lisa do mar.

Quinze minutos depois o vento aperta, uma das duplas de tow-in vai embora, mas três kitesurfistas chegam para dividir o pico ao lado com as duas duplas que ficaram. Um deles vem lá de fora, uns 300 metros pra esquerda, entra na onda bem antes, joga o kite no vento e passa uma seção impossível com uma velocidade animal e mesmo saindo da onda uns 50 metros ao lado do pico onde você está, sem atrapalhar ninguém, aumenta a sensação de que cada onda está sendo caçada ferozmente.

Já tem uma hora que você está na água e ainda não "fez a cabeça". Olha para trás e suspira meio conformado com a visão de umas 30 pessoas boiando, umas sentadas e outras em pé, remo na mão. De repente, você olha para o canal e vê um surfista ajoelhado num longboard e dois surfistas em pé, cada um com um remo, os três entrando com os cabelos secos.  O seu olhar aperta e a testa franze em descrédito ─ eles não estão remando, mas se deslocam suavemente e silenciosamente na sua direção. Cada um tem uma pulseira escura, meio larga, com um visual futurístico e parece controlar alguma coisa com ela. Eles passam por fora e param meio longe, ainda mais longe do que os longboarders. Um deles começa a remar num balanço que nem parecia ser uma onda. Tem alguma coisa estranha, pois ele parece conseguir acompanhar a velocidade daquele balanço bem antes de virar uma onda. Nem um pranchão de 12 pés com 3 polegadas de espessura conseguiria fazer aquilo. A situação acima pode estar um pouco exagerada, mas não está muito longe de acontecer num futuro próximo.

Também, como sempre, tem o outro lado da moeda. Como é impossível voltar no tempo e frear a evolução das coisas, tem perspectivas interessantes que se abrem. Pessoas mais velhas que não conseguem remar direito serão beneficiadas. Crianças novas demais. Ou pessoas que simplesmente nunca tiveram aptidão para esforço físico poderão ter contato com as ondas, com o mar, lagoas e represas. Ainda, o desenvolvimento de motores com propulsão à bateria evitará mais queima de combustíveis fósseis.

A minha preocupação no primeiro parágrafo era baseada apenas na possível falta de educação dentro d'água que essa invenção pode proporcionar. Sem entender que, como todos dentro d'água, o proprietário de uma prancha que rema três ou quatro vezes mais deve esperar a sua vez, a presença de qualquer pessoa com uma prancha dessas no pico será um estorvo.