A PRIMEIRA VEZ DE DUKE NA AUSTRÁLIA


Manhã tranquila de uma sexta-feira, véspera do Natal de 1914, em Manly. Duke Kahanamoku chegara na Austrália no dia 14 de dezembro para uma série de exibições do seu estilo incomparável de nadar, estilo esse que tinha rendido uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Estocolmo em 1912 nos 100 metros, em cima das grandes estrelas australianas, Cecil Healy (que ficou em segundo) e Willian Longworth.

Duke foi recebido com muito entusiasmo pelo povo local que tinha, e ainda tem, enorme paixão por esportes aquáticos.

Todos os principais jornais australianos deram grande importância à visita do famoso havaiano que estava mudando a história da natação com movimentos ritmados dos seus enormes pés e mãos.

Outra coisa que deixava os australianos enlouquecidos de curiosidade era o surfe e nessa manhã do dia 24 Duke finalmente mostraria como enfrentar as ondas com uma prancha e retornar à praia majestosamente em pé, como escreveu Jack London certa vez, parecendo um Deus.

Não foi fácil.

Quando chegou na ilha continente, todos lhe pediram uma demonstração do esporte dos reis, mas Duke não tinha prancha.

Apesar da palavra surfing ser familiar aos australianos, o surfe que eles conheciam era o surfe de peito e uma forma rústica de dropar ondas com seus barcos salva-vidas.

Diversas tentativas de surfar como conhecemos hoje foram feitas, todas frustradas. Desta vez eles teriam uma chance, faltava apenas um detalhe: a prancha.

George Hudson, dono de uma madeireira em Sydney, doou uma placa sólida de uma espécie de pinho, cortou nas especificações que Kahanamoku tinha orientado e o havaiano finalizou o shape fazendo as bordas, colocando uma leve curva no bico e, reza a lenda, sutil concave na rabeta.

Estava pronta a primeira prancha feita na Austrália.

Pesava por volta de 45 quilos, quase o dobro das pranchas que Duke estava acostumado a surfar na sua casa em Waikiki.

A primeira surfada era tão aguardada por todos que foi disputada por organizadores e anfitriões de maneira feroz.  A data pedia solenidade.

Mar forte e ondas difíceis naquele dia 25, mesmo assim Duke entrou deitado e remando de uma maneira absolutamente nova, varou a arrebentação, virou a prancha e desceu algumas vezes ajoelhado para ir pegando o jeito da prancha nova.

Numa delas, para grande assombro, postou-se de pé como nas famosas fotos que rodaram o mundo no início do século.

O que mais os impressionava era a forma ágil como Duke, mesmo deitado, conseguia virar completamente sua pesada prancha quando chegava lá fora, remar junto das ondas e voltar até a praia sem esforço.

Não fazia nem 20 anos que os residentes de Manly tinham conquistado, à custa de vigorosos protestos segundo o jornal Sydney Morning Herald, o direito de ir à praia na hora que quisessem.

Uma das coisas que mais chamou atenção do Duke foi a quantidade de gente dentro d'água todos os dias em Manly, "Vocês têm mais gente dentro d'água aqui em um dia do que nós temos em Honolulu em mais de uma semana", confessou.  Isso tudo porque em 1895 um nativo de Vanuatu, Tommy Tana, resolveu dar um mergulho e voltou pra praia aproveitando a força da onda, nascia ali o surfe de peito na Austrália, ou como eles chamavam, Surf shooting.

Finalmente, no dia 10 de janeiro de 1915, Duke foi fazer sua grande demonstração na praia de Freshwater, milhares de pessoas presentes para testemunhar o grande Kahuna havaiano exibir sua arte milenar de correr ondas.

No meio da multidão, uma menina de 15 anos, Isobel Letham, estudante e nadadora do clube de Freshwater, foi a escolhida por Duke para uma rápida e improvisada aula de surfe.

Isobel, falecida em 1995, foi a primeira surfista da Austrália.

A Austrália hoje tem 13 títulos no World Tour da ASP e 700 vitórias nos circuitos mundiais, junior, mulheres, WQS e pranchão, um número assustador se comparado por exemplo ao Brasil que ainda nem chegou a 200.

Escrevo isso porque ontem, voltando de uma rápida e agradável caída na lendária North Narrabeen, parei na praia de Freshwater e fui ver a prancha do Duke de perto.

Lá estava ela, numa redoma de vidro, imponente, atemporal.

Talvez uma das pranchas mais importantes de toda a história do surfe moderno, eu estava encantado.

"Com licença, quem deixou você entrar? Essa área é limitada apenas a sócios do clube", uma voz feminina nos avisou aflita.

"Só queremos ver a prancha do Duke", ainda tentei explicar.

"Por favor, sejam rápidos".

Saí de lá indignado com o egoísmo da mocinha e com a mais absoluta prova de que a mensagem do Duke até hoje não foi assimilada nem compreendida pela maioria.

Duke compartilhou seu maior tesouro com a comunidade local lhes dando o surfe como herança.

O mínimo que podiam fazer era permitir que curiosos, como eu, ou quem quisesse conhecer um pouco da história do surfe na Austrália, pudesse admirar a pedra fundamental do surfe australiano.

A mocinha assustada que tão gentilmente nos afugentou da sala dos troféus do clube de Freshwater, devia ter orgulho e ficar até envaidecida de ter um brasileiro ali no seu pequeno clube para conhecer seu bem mais precioso.

Paulo Francis tinha razão quando escrevia que a ignorância é a maior das multinacionais.