O GAROTO TEMPESTADE


Eu nunca vi uma performance como a do Gabriel Medina em Imbituba nas fases finais do Super Surf International, no começo deste mês. E olha que eu já vi muita coisa nesses mais de 40 anos de surf. Reno Abellira, no Smirnoff de 1974, foi cirúrgico em ondas de até 30 pés na baía de Waimea. Michael Ho, com o braço engessado, venceu o Pipeline Masters em 1982, inaugurando uma nova maneira de entubar de backside. Tom Carroll venceu seu terceiro Pipe Masters, em 1991, com uma atuação geral devastadora, motivando seu patrocinador a criar uma camiseta que estampava a frase: “If you can’t rock and roll, don’t fucking come!”. Não estou falando da atuação em uma bateria. Estou me referindo a competidores que tiveram um desempenho surpreendente durante três ou quatro fases, dominando o campeonato de um jeito inesquecível.

Mark Occhilupo em Bell’s Beach, Gary Elkerton em Sunset Beach, Tom Curren em Steamer Lane, Kelly Slater em Backdoor / Pipe e Teahupoo. A lista é longa se você puxar na memória os últimos 30 anos. E, quanto mais o surf evoluiu, mais freqüentes se tornaram aqueles shows de surfistas competidores especiais.

Agora mesmo, nos últimos 12 meses, sem esforço nenhum de memória, me vem à cabeça a supremacia absoluta do freak Kelly Slater em dois campeonatos incríveis: o WT de Trestles e o WT de Porto Rico. Em Trestles, o americano abusou das bordas da sua prancha, cravando sem dó nem piedade, tanto a de dentro nas cavadas que o projetavam rumo ao inesperado, quanto a de fora em todos os tipos de carve que dava para imaginar. E assim foi bateria após bateria até a vitória final. Em Porto Rico, na água, ele fez de tudo um pouco e venceu a etapa de um jeito inédito. No meio de toda aquela pressão pelo décimo título e pela morte do amigo e rival Andy Irons, envolveu a todos com um domínio mental absoluto.

Já no começo deste ano, na Gold Coast, outro exemplo de atuação memorável ─ o australiano Taj Burrow brilhou de ponta a ponta e até o duelo de “notas acima de 9” na bateria contra Adriano de Souza, que muitos no Brasil acharam que o brasileiro tinha levado, só fez aumentar o valor do desempenho geral de Burrow na etapa.

Mas vamos ao que interessa, de volta ao início do texto. Mesmo lembrando todos esses campeonatos que descrevi, nunca vi alguém fazer o que o garoto de Maresias fez na Praia da Vila, em Imbituba. Começo falando das notas impressionantes? Das manobras incríveis? Da idade dele? Vamos às notas. Na primeira fase: 8,5 e 8. Na segunda fase: 8,5 e 6,8. Na terceira fase: 7,7 e 7,1. Na quarta fase: 8,8 e 7,1. Na quinta fase, contra Miguel Pupo: 9,5 e 5,1. Bom, até aqui, das dez melhores notas, uma acima de 9, quatro acima de 8 e três acima de 7. Mas foi a partir das quartas de final, quando o mar subiu, que o Medina Show começou.

Contra Damien Hobgood, que pelo tamanho do mar no domingo já era apontado como um dos favoritos, Gabriel Medina fez um 10 e um 9,7, colocando o americano na desconfortável situação de precisar de uma combinação de notas para virar o resultado.

Na semifinal contra Richard Christie, o garoto prodígio fez um 9,8 e um 9,7 e também colocou o desconhecido neozelandês em combinação. Medina ainda descartou nessa bateria um 9,3 e um 9! Você surfa? Já competiu em qualquer categoria? Campeonato de bairro, de condomínio? Qual foi a última vez que tirou um 9? Com as duas notas que “sobraram”, descartadas do seu somatório, o brasileiro venceria mesmo assim o neozelandês, que fez um 8,3 e um 6,8, e ainda o colocaria em combinação.

Na final, contra o experiente Tom Whitaker, muito bom em ondas com tamanho, Gabriel Medina finalizou o espetáculo interpretando com inteira liberdade criações de sua própria autoria (performance, Houaiss) para fazer outro 10 e um 9,1. Foi como se, num show de música, depois das quartas e das semis, o público presente tivesse pedido um “bis” e Medina voltasse ao palco, tocando as suas duas melhores músicas com variações inéditas de arranjos e solos de guitarra, arrancando gritos, assovios e aplausos de todos na praia. Com essas duas músicas, quero dizer, notas, o brasileiro menor de idade colocou o sólido australiano em combinação. Mais um no desconforto!

Nenhum surfista competidor vence as três últimas baterias de um evento Prime com ondas de 6 pés sólidos, com todas as notas que contam acima de 9 sem ter tido uma performance espetacular.

Em 2009, o nome Gabriel Medina rodou o planeta quando ele se tornou o mais jovem vencedor de uma etapa 6 estrelas do WQS. Ele tinha apenas 15 anos quando venceu Neco Padaratz na Praia Mole. Logo depois, na França, ele chocou o mundo do surf com as imagens do seu repertório ultramoderno de manobras nas quartas, na semi e na final do King of Groms. Fez um estrago nessas três baterias com aéreos, aéreos 360, superman... Algumas das ondas com duas dessas manobras na mesma onda!

O impressionante foi ver ele repetir o mesmo tipo de performance em ondas pelo menos quatro vezes maiores. Na França as ondas tinham meio metro, perto da beira. Na Praia da Vila, as ondas tinham pelo menos 2,5 metros de face, com a força de um swell grande de sul que começava a limpar.

Na semana anterior, ele já tinha dado indicações da sua precoce maturidade competindo na praia de Itaúna, no Prime de Saquarema, num mar enorme, com mais de 3 metros. Mas na Praia da Vila, Medina se soltou, mandou todo o seu repertório de manobras de expression session em baterias pra valer e fez isso no início das ondas, quando elas estavam mais em pé, com a maior altura possível.

A diferença foi essa ─ ele poderia ter feito uma combinação cavada / rasgada nas primeiras manobras, quando as ondas tinham a maior altura e, na segunda ou terceira manobra, quando a onda diminuísse de tamanho, soltado um aéreo 360 ou um superman. Ele ganharia notas altas quase que do mesmo jeito. Mas não. Ele entrava na onda, ganhava a base, projetava uma cavada com a parede mais de duas vezes o seu tamanho e mandava um aéreo com as mãos nas bordas, outros sem mãos, um aéreo 360 lindo sem mãos, um superman irado... Tudo na parte mais crítica das ondas e todas com uma aterrissagem perfeita.

Tem mais dois detalhes. O primeiro ─ ele estava tão moderno, que duas ou três rasgadas animais com a rabeta desgarrando no lip, invertendo totalmente a direção da prancha logo na primeira manobra, podem ter sido assimiladas por alguns como manobras convencionais. Nada disso. Não é qualquer um que tem a técnica para fazer daquele jeito e a coragem de arriscar aquele movimento numa onda que pode ser a melhor da bateria. O segundo detalhe ─ ele foi de uma imprevisibilidade rara de ver. Quando estava subindo em direção ao lip, você nunca sabia o que ele ia fazer e isso é uma das coisas mais legais quando estamos apreciando alguém surfar bem. Os juízes adoram.

Resta um último aspecto, não menos surpreendente. O garoto não tem nem 18 anos de idade! É “di menor”. Na minha opinião, vai entrar para a elite já no corte do segundo semestre. Nas duas vezes que o vi competindo no WT, surfou de maneira acanhada, meio preso. Se essa sua postura estiver enterrada a sete palmos de profundidade no passado e se eu fosse um Top do World Tour, estaria vendo uma tempestade vindo na minha direção.