DIVISOR DE ÁGUAS ─ COM QUILHAS


O desempenho do baiano Danilo Couto e do havaiano Shane Dorian em Jaws, no Hawaii, inaugurou agora, no finalzinho da temporada havaiana 2010/11, uma nova categoria no esporte dos reis ─ o surf de ondas gigantes na remada. No universo cada vez mais popular do “big surf”, tínhamos o surf de ondas grandes na remada e, chamando um pouco mais de atenção, o tow-in em ondas gigantes. Agora, depois das duas últimas sessões em Jaws, em fevereiro e março deste ano, o surf de ondas gigantes na remada se materializou e deve disputar palmo a palmo a atenção mundial com o tow-in.

É imperativo registrar que o divisor de águas nesse novo e importante capítulo da história do surf moderno foi a onda de Danilo Couto, com todos os ingredientes a que o baiano tinha direito. A prancha parecia ter o tamanho certo e estava no pé, a onda brilhava em tom azul forte com reflexos prateados, um terral moderado deixava a parede lisa e, do início da remada até colocar os pés na prancha, a adrenalina explodiu no seu corpo com uma energia capaz de iluminar uma vila de pescadores à beira-mar durante uma hora.

Vâmo, vâmoo, vââmooo”, deve ter berrado mentalmente na hora de soltar as mãos das bordas e colocar os pés na prancha! Com a gunzeira pegando um ar no fundo e deixando apenas a pontinha da rabeta na água, o grito mental deve ter mudado para “Güenta, güeeentaaa... aahhh!”.

Bem, dali em diante, outra pequena descolada do fundo da prancha na água, o controle recuperado com a linda base que o Danilo sempre mostrou fazendo tow-in de costas pra onda em Jaes, duas rápidas seguradas na borda com a mão de fora e perfeito posicionamento no olho da onda, que ainda rodou harmoniosamente, toda vaidosa, se mostrando para o mundo inteiro ver.

Ninguém me contou, mas eu sei que vários fissurados em ondas grandes e gigantes mundo afora ficaram doidos, com uma penca de pensamentos instantâneos do tipo: “Porra, como é que eu não estava lá?” ou “Eu sempre pensei em surfar Jaws na remada. Eu deveria ter tentado antes” ou ainda “Não acredito nessa onda do Danilo! Vou monitorar a internet e to dentro no próximo swell”.

Esses pensamentos circularam nos dias seguintes ao 8 de fevereiro, dia do encontro das remadas do Danilo com as direitas de Jaws. Quando todos já se contentavam com a perspectiva de encarar Jaws na remada na próxima temporada 2011/12, a mandíbula se abriu mais uma vez no dia 15 de março com uma turma, ainda de madrugada, adrenalizada com a expectativa do desconhecido.

Em muitas situações, o “antes” mete mais medo do que o “agora”. Aquela hora e meia antes de clarear é difícil de controlar. Você se decidiu dias antes vendo a internet. O seu estado de espírito já não é mais o mesmo e os que te conhecem bem já notam a mudança no seu comportamento. Na noite anterior, geralmente rola uma comunhão com a gunzeira escolhida e, mesmo que seja a única, você olha pra ela de um jeito diferente, passa uma parafina mesmo que ela não precise, só para ter um motivo de estabelecer um contato físico. Limpa as bordas, o fundo, e até cochicha alguma coisa. Gunzeiras especiais têm vida, têm alma, e na noite anterior a uma manhã com previsão de mar nervoso, a alma da gun escolhida pulsa, quase dando pra ver. Você não dorme direito e, se pudesse escolher, iria das 10 da noite para as 4 e meia da manhã num piscar de olhos.

De manhã cedo, indo para o encontro, é difícil relaxar.

A minha gun de Waimea vai ser suficiente?” “Será que vai estar grande demais pra remar?” “O vento vai estar muito forte?” “A gun nova um pouco maior, mais larga, mais grossa e com quatro quilhas vai funcionar?” “Uso um colete salva-vidas ou não?” “Uso cordinha?”.

O grupo foi para a água e Shane Dorian se destacou. O cara tem lastro. Anos de performance espetaculares no Hawaii, tow-in em Teahupoo, aquela monstruosidade em Waimea, ao lado de Mark Healey, em dezembro de 2009.

Naquela manhã, Dorian estava mordido. Sonhava em surfar Jaws na remada havia um tempo, provavelmente inspirado pelas histórias do Danilo, Marcio Freire e Yuri Soledade indo para a esquerda, não acreditou quando soube do feito do Danilo nas direitas e ele não estava lá. Com uma gun 10’6” quatro quilhas, ele dropou uma bomba de uns 45 pés com uma técnica rara, mesmo entre os melhores. Primeiro, remou batendo os braços com força na água para compensar o vento forte que soprava contra. Experiência! Depois, assim que levantou na prancha, evitou que o terral forte levantasse o fundo pisando um pouco mais pra frente e, quando começou a descer a absurda ladeira, enfiou a mão de dentro na parede de água e inclinou um pouco o corpo para mudar a trajetória em direção ao canal. Experiência e reflexos rápidos! Chegando na base já foi cavando e jogando pra dentro daquele monstro rodando como se estivesse em cima de uma semigun em Off The Wall. Prancha boa e talento puro!

Morreu lá dentro, mas ganhou o respeito dos que estão vivos. Da temporada de 1973/74, quando o americano Jim Neece chegou ao Hawaii com uma gun 12 pés vomitando que queria surfar Kaena Point, até dois, três anos atrás, mais de 35 anos se passaram com a certeza de que não conseguiríamos remar em ondas com mais de 30 pés.

Fiquei um tempão cristalizado vendo a foto animal tirada pelo Bruno Lemos dessa onda do Shane Dorian e foi impossível não pensar: “Essa é a maior onda surfada na remada já registrada?”.