REMANDO PELA VIDA


O SWELL HISTÓRICO QUE ATINGIU O PACÍFICO NORTE NOS DIAS 15 E 16 DESTE MÊS FICOU MARCADO PELA MAIOR ONDA JÁ SURFADA NA REMADA ATÉ ENTÃO EM JAWS, NA ILHA DE MAUI, HAWAII, PELO HAVAIANO SHANE DORIAN, E PELA MORTE DE SEU CONTERRÂNEO SION MILOSKY, EM MAVERICK’S, CALIFÓRNIA, REACENDENDO O DEBATE SOBRE OS LIMITES DO SURF DE ONDAS GRANDES SEM AUXÍLIO DE JET SKI.
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Este mês ficou marcado na história do surf mundial. Na terça-feira 15, o renomado surfista havaiano Shane Dorian teve um dia de glória em que pegou em Jaws a que foi considerada por muitos especialistas a maior onda já surfada na remada em todos os tempos. No dia seguinte, a festa acabou virando pesadelo quando o swell encostou na Califórnia e Maverick’s quebrou pesada, culminando na morte de mais um surfista de ondas grandes no local, o havaiano da ilha do Kauai Sion Milosky, aos 35 anos. O feito de Dorian e a tragédia com Milosky, um big rider underground que vinha se destacando nos últimos anos nas maiores ondulações do North Shore e arredores, levantaram algumas questões. Até que ponto premiações polpudas, como as oferecidas no XXL Big Wave Awards, estão levando os surfistas a arriscar a vida de forma inconseqüente na busca por fama e dinheiro? A banalização do tow-in e a conseqüente retomada do surf na remada em condições extremas estão contribuindo para aumentar os riscos? São questões subjetivas, mas certamente pedem uma reflexão por parte dos envolvidos.

As grandes ondulações no oceano Pacífico costumam entrar durante o inverno, entre os meses de novembro e fevereiro. Março já é primavera, época de ondas menores, vento terral constante e menos crowd no outside.

O sistema de baixa pressão que gerou esse swell tardio foi um caso atípico. Coincidentemente o swell nasceu no Japão, onde poucos dias antes um mega terremoto seguido de tsunami devastara o arquipélago ─ no Hawaii e na Califórnia houve alerta de tsunami e evacuação da população em algumas áreas, mas no fim nada de significativo aconteceu.


DORIAN, O ATIRADOR DE ELITE
No pico do swell do dia 15, as bóias que medem as ondulações na costa havaiana, localizadas a cerca de 12 horas das praias, marcaram ondas de 17 pés e 20 segundos de intervalo, o equivalente a ondas de 30 a 40 pés de face nos picos mais favoráveis.

Há alguns anos os brasileiros vinham surfando sozinhos na remada as esquerdas de Jaws, na ilha de Maui, mas no mês passado alguns dos mais famosos surfistas de ondas grandes, como Greg Long, Mark Healey e Sion Milosky, se uniram no outside a Danilo Couto, Marcio Freire, Yuri Soledade, entre outros, e desafiaram na remada a pesada direita. Danilo detinha até então o que muitos especialistas afirmavam ser uma das maiores ondas surfadas na remada da história, se tornando um dos favoritos em duas categorias do XXL, de Maior Onda Surfada na Remada (Monster Paddle) e Melhor Performance (Ride of the Year).

Embalado pela atitude dos colegas e vendo a aproximação desse swell às vésperas do encerramento do prazo de inscrição para o XXL, o havaiano Shane Dorian juntou seus equipamentos e se mandou para Maui. Munido de uma 10’6” feita especialmente pelo shaper John Carper para esse tipo de onda, e com um colete especial que infla e traz o surfista à tona muito mais rápido com um simples aperto de botão, tudo isso aliado ao seu talento natural, Dorian foi o destaque da session pegando a maior onda surfada na remada em Jaws. Ele remou, dropou (o que mais parecia uma avalanche líquida) com segurança, fez a cavada como se estivesse no Backdoor e colocou pra dentro de um tubo monstruoso, mas foi esmagado pelo lip. “O ambiente estava perigoso, porque tinha uma galera fazendo tow-in, havia windsurfistas, e ambos passavam em alta velocidade com seus jets e pranchas à vela no meio de nós. Em condições assim, tão perigosas, você não quer pegar as ondas que sobram”, disse Dorian.

Além dele, estavam fazendo sua estréia em Jaws sem auxílio do jet ski os big riders brasileiros Carlos Burle e Edson de Paula. O baiano radicado em Maui, Marcio Freire, também estava na água e comentou a sessão: “Eu, Danilo, Tiago Candelot, Hilton Issa e o local Ohanu pulamos das pedras em frente às ondas. O que mais me impressionou mesmo foi a tecnologia do colete salva-vidas que Shane Dorian estava usando. Tinha uma espécie de bolsa anexada onde ele apertava um botão e o colete inflava. Shane usou pelo menos duas vezes e a cada vez tinha que trocar o refil, creio que isso deu mais segurança a ele”.

O forte vento nordeste atrapalhava um pouco o desempenho dos surfistas na esquerda de Jaws e as melhores ondas foram surfadas para a direita. Quando o vento é Kona, que sopra na direção contrária, as esquerdas ficam melhores. Outro detalhe que torna a sessão de surf na remada em Jaws adrenalizante é que não existe um line-up definido. “Em Jaws as séries aparecem do nada no horizonte e não há o que fazer a não ser soltar a prancha e rezar. Outro detalhe é que as direitas são mais difíceis de serem surfadas, pois são mais tubulares. Mas quando as bóias baterem acima dos 20 pés, como aconteceu algumas vezes em 2004 (e ainda não ocorreu nessas sessões de remada nos últimos três anos), as esquerdas serão a única opção. Sem chance de remar em uma onda de 60 ou 70 pés de face na direita”, atesta Freire.


DEPOIS DE JAWS, TOCA PRA MAVERICK’S
Quando marcam do Japão em direção ao Hawaii, as grandes ondulações do Pacífico batem na Califórnia algumas horas depois. Desde os anos 90, quando a onda de Maverick’s apareceu na mídia, os big riders surfam no Hawaii e na mesma noite pegam o avião para a Califórnia para surfar no dia seguinte em Half Moon Bay.

Em 1994, os havaianos Mark Foo, Brock Little e Ken Bradshaw fizeram uma das primeiras incursões nesse esquema, voando durante a noite para surfar Mav’s no dia seguinte. Foi nesse dia que Maverick’s fez a sua primeira vítima. Mark Foo caiu em um drop e seu corpo foi encontrado meia hora mais tarde boiando na beira das pedras. Desde então, alguns surfistas de ondas grandes continuaram essa saga de percorrer o swell pela costa do Pacífico, começando no Hawaii, passando por Maverick’s e muitas vezes dirigindo durante a noite de São Francisco para o México, para surfar no terceiro dia a onda de Todos Santos.

Nesse último swell, depois da session em Jaws, o baiano Danilo Couto foi um dos que pegaram o vôo para São Francisco com a intenção de encarar as pesadas e geladas ondas de Maverick’s. Na quarta-feira 16, o mar estava pesado e sinistro em Mav’s, como descreve o brasileiro radicado na Califórnia, Madio Chiarella, que dividiu o line-up com Alexandre Martins e Danilo: “Esse foi mais um dia em que as bóias de Half Moon Bay bateram os 16 pés com 20 segundos e algumas séries sólidas de 20 pés bombaram depois do almoço até o final de tarde”. Martins, que também é radicado em São Francisco, continua: “Eu saí do mar por volta de 17h30 e estava bem perigoso, o vento não era terral e as condições estavam adversas”. Para Danilo, a questão é um pouco mais complicada: “O mar estava bem grande, cerca de 15 a 20 pés sólidos, mas o que fez esse dia ficar mais pesado que os demais foi o longo período e a direção de oeste, a potência da onda estava na largura”, explica.

O local Ken “Skindog” Collins, que vive em Santa Cruz, era o anfitrião de Sion Milosky e Nathan Fletcher e os recebeu em sua casa: “Sion estava pegando as melhores ondas do dia, insano, dominando o pico como se fosse local. As ondas estavam grandes e todos perguntavam ‘quem é esse cara?’”, conta Skindog. Sion era conhecido por ser um dos mais atirados surfistas de ondas grandes do momento. No ano passado ele venceu o North Shore Challange, em Oahu, surfando uma onde de 25 pés na remada em Himalayas, pela qual faturou um cheque de U$ 25 mil.

O fotógrafo Ryan Craig estava no canal no jet ski e descreve os últimos momentos de Sion antes de o havaiano morrer afogado: “Ele foi na primeira onda da série, que tinha umas quatro ou cinco ondas. Sion vacou e sua prancha apareceu na superfície antes da segunda onda, mas ele ainda estava embaixo d’água. Depois que a série passou fui à sua procura pela arrebentação, nas pedras, no canal e não o achei. Cruzei com Nathan Fletcher, que também estava de jet ski, e avisei do sumiço de Sion. Fletcher foi procurá-lo perto da boca da marina e eu na lagoa em frente às ondas. Quando vi, Nathan estava com o corpo de Sion sobre seu jet ski, fui ajudá-lo e Sion estava com os olhos abertos e o corpo azul. Nathan estava desesperado, eu acho que Milosky ficou uns 10 minutos até ser encontrado”, relata Craig. A ironia é que Sion também estava usando o colete que infla e que pode ter salvado a vida de Dorian em Jaws, mas nesse caso ele obviamente não funcionou.


QUANTO VALE O SHOW?
No ano passado Mav’s tinha mostrado seu potencial letal no swell monstruoso que rolou durante a etapa do Big Wave World Tour. Foi típico dia que rolaria tow-in se os big riders não estivessem dispostos a encarar no braço as ondas que beiraram os 60 pés. Shane Dorian, durante a manhã antes do evento, e Carlos Burle, em plena bateria, tiveram experiências aterrorizantes e quase morreram afogados.

A morte de Sion Milosky foi a quinta entre as mais marcantes do surf de ondas grandes, todas as sessões na remada. O havaiano Dick Cross foi o primeiro caso conhecido, em 1943 na baía de Waimea. Depois foi Mark Foo, em dezembro de 1994 em Maverick’s. Don Solomon foi o terceiro, em Waimea em 1995. O quarto foi Todd Chesser, em fevereiro de 97 em Alligators Rock. São cinco mortes em sessões de remada contra nenhuma registrada no tow-in. A tese é defendida pelo big rider Dan Moore com o seguinte argumento: “No tow-in você tem seu salva-vidas particular, que é piloto, e também o colete salva-vidas”. Outro fato controverso é com relação ao uso do jet ski no canal em Maverick’s para garantir a segurança dos surfistas. Half Moon Bay é um santuário ecológico e o uso de jets particulares é proibido no local ─ os que estavam na água naquele dia estavam infringindo a lei.

No entanto, após mais uma tragédia, as autoridades voltaram a debater uma maneira de adequar o uso da máquina por equipes especializadas para realizar salvamentos em dias de ondas gigantes. Os acontecimentos nesse swell, que mistura glória e tragédia, levantaram a questão sobre até que ponto as premiações como o XXL Big Wave Awards potencializam o número de surfistas que buscam a fama e dinheiro surfando as maiores ondas do mundo.

É uma questão difícil de responder, pois as mortes de Foo, Solomon e Chesser aconteceram sem premiação nenhuma envolvida e numa época em que o alcance de seus feitos não era global como hoje. Shane Dorian, atualmente o melhor surfista de ondas grandes na opinião de muitos, garante que sua motivação é puramente passional. “O prêmio em dinheiro é um bônus, não um incentivo. Minha vida vale muito mais do que qualquer quantia oferecida no XXL, isso eu garanto. Faço por opção, porque eu amo. Faz eu me sentir vivo. Nenhum prêmio me faria ir lá fora e arriscar minha vida se eu não estivesse confortável fazendo isso”, declarou.

Danilo ficou em Maverick’s durante a semana seguinte à morte de Sion e presenciou a chegada da viúva dele ao local. “Foi uma cena devastadora. Ele deixou esposa e duas filhas lindas. Não acho que Sion estava puxando os limites pelo dinheiro, cada um tem seu dia e aquele era o dia dele”, pondera o baiano.

A busca por adrenalina e o desejo constante de desafiar os próprios limites e os da natureza sempre farão parte do ser humano. Muitos surfistas preferiram deixar de lado a segurança e a facilidade oferecida pelo jet ski para viver experiências cada vez mais radicais, como fizeram Shane Dorian, Danilo Couto e outros em Jaws nos últimos swells. Para o californiano Greg Long, esses episódios foram um divisor de águas no surf de ondas grandes. “Essas sessões de surf em Jaws na remada marcaram um novo caminho para os big riders”. Uma frase famosa do havaiano Mark Foo resume a essência da modalidade: “Se você quer experimentar a emoção máxima, tem que estar disposto a pagar o preço mais alto”.


REMADA × TOW-IN
Nas últimas temporadas de ondas grandes alguns surfistas começaram um movimento de volta às raízes, surfando no braço sem a ajuda do jet ski as maiores ondas que encontravam pela frente. O que vinha ocorrendo e chateando os experientes homens do mar era a mistura dos reais surfistas de ondas grandes com muitos surfistas inexperientes em dias grandes rebocados pelo jet ski, causando transtorno e um desvio dos reais valores da modalidade. Para Danilo Couto, residente em Mokuleia, North Shore de Oahu, o tow-in tirou um pouco do brilho da modalidade. “Qualquer um pode comprar um jet ski e se aventurar num mar gigante. Isso começou a causar problemas no mundo inteiro. Nada contra essa galera, mas resolvemos puxar o limite no braço mesmo, como era feito lá no começo da história do surf”. Um tempo atrás, em Sunset, vendo uma galera fazendo tow-in em Backyards em um dia pequeno, o lendário big rider Darrick Doerner comentou: “No mundo inteiro é assim, ouvi falar que na Austrália, Califórnia e até no Brasil é essa loucura, não é? Criamos um monstro. Esses surfistas viraram até profissionais do tow-in, mas nunca remaram em um mar de 20 pés”, definiu um dos criadores do tow-in ao lado de Laird Hamilton. Aliás, o que será que pensa sobre tudo isso o maior waterman de todos os tempos?


FATALIDADE OU ABUSO?
Fora as mortes de Mark Foo, em 1994, e de Sion Milosky, a poucos dias, em Maverick’s, outras três mortes em ondas grandes abalaram o mundo do surf nas últimas décadas. Na temporada de 1943, Dick Cross e seu amigo Woody Brown entraram em Sunset com o mar subindo e as séries ficaram grandes demais, obrigando a dupla a remar até Waimea para tentar sair da água. Algumas séries fechando o horizonte pegaram os dois, mas Dick foi jogado para o lado esquerdo da baía e nunca mais foi visto.

Em 23 de dezembro de 1996, Don Solomon perdeu a vida em Waimea depois de ter voltado com o lip na primeira onda de uma das maiores séries do dia. Poucos minutos antes ele havia surfado uma onda junto com seu amigo Kelly Slater e o big rider Ross Clark Jones. O californiano, local de Ventura, estava com 25 anos de idade e já era figura constante nos dias grandes.

Todd Chesser morreu no outside reef de Alligators Rock, em 97. Eu estava entrando no nesse dia em Waimea, com séries de 15 pés, quando uma série gigante de 20 a 25 pés fechou a baía. Os salva-vidas desesperadamente colocaram umjet ski na água e o experiente Terry Ahue passou batido por todos que estavam com suas pranchas quebradas ou sem cordinha se recuperndo da grande série que havia acabado de passar e se dirigiu para o lado de Haleiwa. Todd havia ido surfar na remada e Alligators com um grupo de amigos, entre eles, Aron Lambert. A previsão da TV mostrava que o dia iria amanhecer com ondas de 20 pés. Não foi o que aconteceu. Séries de 15 pés bombaram durante toda a manhã, colocando em dúvida se o mar realmente iria subir. A série maior pegou todos de surpresa e acabou tirando a vida de Chesser, que se afogou ao levar na cabeça.