TAHITI


Da janela do avião via-se um mar que não acabava mais. Horas e horas voando num cacete de quase 1.000 km/h, com água e mais água passando por baixo, e nada daquele mar acabar. “Será que o mundo todo virou água? Será que uma hora vai ter mesmo uma terrinha aí pra gente pousar?”, brincando comigo mesmo, eu me questionava.

Era dezembro de 1980 e logo de madrugada havíamos decolado de Santiago do Chile. Muitas horas depois pousáramos na Ilha de Páscoa. Eu descera pra tomar um ar e pensar se ficaria uns dias por ali, porém, ao olhar em torno vi uma ilha árida, pedregulhenta, desolada, praticamente sem árvores e cujo mato rasteiro estava ressequido devido ao vento salino que parecia incessantemente fustigar aquela terra monotonamente ondulada, que se acabava em penhascos escuros no mar bravio e desconjuntado.

Eu nunca ouvira falar em surf nessa ilha e nem prancha eu tinha, pois pretendia comprar uma na Austrália. Um outro avião só escalaria ali na semana seguinte. Então, apesar de querer ver de perto aquelas enormes figuras de pedra, quer saber? Tô fora!, pensei, não vou trocar uns dias no tão almejado Tahiti por esta ilha seca.

Então, recurvando-me, recebi no pescoço o colar de flores murchas que a nativa seca de olhar sofrido me ofereceu e tornei a embarcar na máquina voadora.

— Desculpa, moça — pensei —, mas estou com o hula-hula verdadeiro na cabeça e não é bem isso o que rola aqui. Aqui a coisa ta meio triste, com uma alegria meio na forçação de barra. Não dá pra ser um povo muito feliz nesta aridez lascada aqui. Sabe como é, moça, eu estou aqui de turista, mas turista mesmo, sabe, só de passagem e sem disposição para nada que não seja do meu agrado, é um direito merecido que ora me dou, e venho de longe porque estou atrás de uma noite quente e úmida, numa praia de areia fofa, onde a maresia voeja mansa e brilha na luz do luar, com aquelas moças tipo quadros do Paul Gaughin dançando ordenadas de coroa de flores na cabeça, cinturinhas de violão ondulando com suave energia, suas peles refletindo as cores quentes das tochas de fogo, aquelas pernas brilhantemente bronzeadas e cheirosas escapando pra fora dos vestidos farfalhantes de folha de coqueiro, tornozeleiras de conchinhas brancas que emitem sons ritmados ao chacoalhar, violinha tocando solta, aquela dança simbolizando umas histórias folclóricas simples e românticas do tipo moça que ama o moço e o moço que ama a moça e eles querem mais é se abraçar e beijar e o mundo que se exploda, e sorrisos e mais sorrisos doces de satisfação com a vida prazenteira. Hula-hula, hula-hula! Uma silenciosa nativa que me pegasse pela mão e me levasse para uma esteira, onde de mim tirasse o que eu não sabia que tinha para dar.

Acho que eu vira muitos filmes antigos de Hollywood a respeito, acho que lera muito Jack London, Joseph Conrad, Sommerset Maughan, escritores que viveram naquelas ilhas do Pacífico quando delas ainda emanava o frescor da virgindade, época em que ao nativo dali bastava o que aquela natureza generosa tinha para oferecer e suas mãos pegar.

Algumas coisas na vida a gente tem que ver com os próprios olhos, algumas coisas a gente decide que temos que vivê-las com o próprio corpo.

— Tahiti, aqui vou eu!

Mais mar, mais um mundão de mar que se estendia até os longínquos horizontes que nos rodeavam. O mundo era uma imensa bola d’água.

O estranho de voar muitas horas seguidas do leste para o oeste é que o Sol custa a se mexer. Parece que o seu curso está mais lento e o dia custa a passar. E na verdade custa mesmo, já que acompanhamos o movimento do Sol como se fugíssemos da noite que inexoravelmente se aproxima de nossas costas. Mas o Sol nos alcança e passa. Calculei que precisaríamos voar a uns 2.000 km/h para empatar com ele, e aí as horas não passariam.

E foi assim que ao finalzinho da tarde o piloto enfim anunciou que chegávamos ao Tahiti. Muito gentil, ele nos presenteou com um sobrevôo ao redor da ilha. Uma ilha que à essas horas do ocaso mostrava-se escura, quase negra, montanhosa, com picos escarpados e afiados, sulcada de profundos vales de mata úmida e densa. Uma ilha silenciosa e imponente, dona de uma majestade tranqüila.

Protegidas por espumantes anéis de coral, lagoas plácidas e translúcidas cercavam partes da ilha, e nela alguns barcos navegava, na certa pescadores em sua faina diária.

Olhar essa cena impactante, para mim, foi como começar dar formas a um sonho até então difuso e encantador. Senti uma espécie de medo; aquela angústia que sentimos quando estamos preste a realizar um delicioso sonho por muito tempo sonhado; senti medo de que a realidade não correspondesse à beleza e perfeição do sonho, e por momentos tive até reflexos de voltar atrás para não desfazê-lo.

Mas o medo logo passou e o que tomou conta de mim foi a vontade de mergulhar imediatamente nesse sonho, fosse ele qual fosse, e o que me sobreveio foi um aperto na garganta, um conveniente aperto, pois algo teria que conter a imensa efervescência que passou a borbulhar em meu peito.

— Tahiti, aqui vou eu! Eu nasci pra isso, eu sei!

Foi um gostoso impacto sair do frio ar-condicionado do avião e inflar meus pulmões com o ar quente e úmido da ilha. Só isso, de cara, já nos acalma. Nossos brônquios se dilatam, nossas veias afloram sobre a pele, e quase que imediatamente nosso metabolismo vai assumindo um ritmo mais lento, você vai ficando mais na base do taiquirisi.

Observando a tarde que findava, embevecido com um céu de pinceladas alaranjadas, que em degradê iam para o azul, azul escuro e negro, fui descendo a escada do avião. E nessas, logo ao pisar em terra, recebi de uma moça um sorriso alegre e um perfumado colar de flores.

Se alguém puder imaginar melhores boas-vidas, que fique com elas, pois creio que nem São Pedro bolou um jeito melhor para nos receber no céu.

A moça do colar me falou umas coisas ali que não entendi nada, mas o tom, o ritmo, e o modo cantado de sua expressão já indicavam que o povo que acabou se exprimindo assim levava uma vida boa. Nada de palavras truncadas, sons engolidos e nervosos como na língua alemã ou japonesa, de gente que fala pra dentro e aos quais e expressar é um custo, um tormento. O tahitiano se expressa naturalmente, parece que facilmente Poe pra fora o que sente.

— Merci, mademoiselle, merci.

A grande vantagem da colonização francesa sobre a norte-americana, ou seja, a do Tahiti sobre a do Hawaii, é que a francesa é mais respeitadora da cultura local, enquanto que a norte-americana passa uma borracha por cima para apagar tudo e impor a sua, com shopping-centers, Mc Donald’s e caminhonetonas. Daí que o aeroporto de Papeete era pequeno, tinha uma arquitetura marcadamente polinésia, não tinha ar-condicionado, só preguiçosos ventiladores de teto, e as coisas eram gostosamente meio atrapalhadas e sem pressa, fazendo que não sentíssemos a sensação de que somos um objeto numa linha de montagem, cujo objetivo é te despachar dali o mais rápido possível de mala e cuia dentro de um táxi.

— Taxista, quero um hotelzinho barato e perto do mar!

— Oui, oui.

— E como é que se fala moça bonita em tahitiano?

— Moça é vahine. O resto você que se vire, seu mané folgado — falou isso u algo parecido.

— Beleza. E tem onda por aqui? O pessoal pega onda?

— Muito pouco.

— Pois é, nunca vi uma reportagem falando sobre o surf daqui, mesmo assim amanhã vou alugar um carrinho aí pra dar uma volta na ilha e ver se acho umas ondas. E Moorea, tem onda?

— Não sei. Mas a ilha é muito linda, ótimo para mergulho. Vê se vai logo pra lá e mergulha bem fundo.

Surfei umas ondinhas com prancha emprestada de um moleque, a quem dei carona no jipinho alugado. Ondas de recife, que davam um drop legal, mas que acabavam logo. O lugar, porém, uma pequena baía abrigada por um coqueiral, já valia pelo visual.

Realmente, pouco se falava de surf por lá. Teahupoo, então, nem ouvi esse nome, já que ela seria primeiro surfada por cinco anos depois, pelo local Thierry Vernaudon. Talvez tenha sido sorte minha, pois eu bem que poderia ter deixado mais partes de mim naquelas ilhas.

E estas recordações, e mas outras, algumas partes de mim que lá ficaram, já me bastam.

SURFISTA SALVA-VIDAS


N
o começo do surf aqui no Brasil, quando ainda não tinha sido inventada a cordinha, os surfistas não eram muito bem-vistos pelos banhistas, isso porque volta e meia vinha do fundo uma prancha perdida pra rachar a cabeça de alguém. Isso era comum, bem comum. Quando perdíamos a prancha e a praia estava cheia, logo vinha nossa torcida para que ela não acertasse um crânio. E a coisa ficava feia mesmo quando ela acertava uma criança. Aí, meu chapa, aí ferrava. O pai, com toda razão, vinha enfurecido feito um touro. Normalmente, enquanto o sujeito te esperava vir do fundo, ele tentava quebrar a prancha em cima do joelho, e aí era o pai da criança contra o “pai” da prancha. Pancadaria das boas, salva-vidas entrando no rolo, apito, mulherada gritanto.

Dependendo da relação de tamanho entre o surfista e o banhista, o surfista nadava um bocado pra sair do mar longe da prancha, para depois, disfarçadamente, tentar pegá-la e meter sebo nas canelas praia afora.

Numa melhor hipótese, o banhista via a prancha vindo e, solícito, tentava pegá-la. Só que não tinha a mínima previsão de como a prancha se comportaria com o movimento da onda que a levava, daí que o tonto ia pegá-la daqui, ela reagia dali, e voava no nariz dele. E lembre-se que as pranchas eram bem maiores e pesadas que as de hoje. Chato pacas pedir desculpa.

O resultado dessas encrencas? Nas praias mais freqüentadas pelos banhistas ─ tipo a de Pitangueiras, no Guarujá ─ os salva-vidas nos proibiam de surfar em vários pontos da praia. Imagine isso! A onda quebrando e alguém te proibindo de pegá-la! Pra caramba que eu não ia lá! E aí o salva-vidas vinha nadando e nos dava um ralo dos bons. Discussão. Chato pacas.

Mas aí a coisa foi mudando. Os surfistas começaram a salvar vidas.

Muitos nem se apercebem disso, mas nós, surfistas, já salvamos muita gente que se afogaria. A maioria dos surfistas já tirou alguém da água. Eu, por exemplo, já tirei um monte, e disso muito me orgulho. Lembro que certa vez em Cambury, lá por meados dos anos 70, surfando sozinho em um mar de um metro no canto esquerdo, vi duas cabecinhas beirando as pedras. Dois sujeitos pegos pela correnteza iam à toda para o fundo. É muito comum formar correnteza beirando as pedras, e delas nós surfistas nos utilizamos para varar rápido e sem tomar onda na cabeça, mas elas são um perigo danado para os banhistas. E esses dois iam feito uma bala. Remei feito doido e consegui dar-lhes minha prancha, na época uma Johnny Rice azul e branca, swallow, 7’.

Mantive certa distância dos caras, para que não me agarrassem ─ que é a primeira e forte reação do afogado ─, e me imaginei na situação deles. Concluí que a melhor coisa a dizer-lhes é que agora eles não morriam mais. Que tivessem paciência, que respirassem e descansassem, que a gente sairia dali na boa. E foi assim. Após sossegarem, puxei-os de lado, para fora da correnteza, mandei que se agarrassem firme à prancha e fomos devagar até a praia. Já na praia, sentados, me disseram que recém haviam chegado de outro Estado e trabalhavam como pedreiros numa obra.

Me agradeceram muito e se ofereceram para fazer tudo o que eu lhes pedisse. Eu disse que não, que nada, que estava é contente por tê-los tirado dessa fria. Mas eles insistiram e, sérios, me perguntaram se eu estava “a fins de apagar algum sujeito”, eliminar algum desafeto. Ao ouvir essa oferta, assustei, mas confesso que logo comecei a pensar melhor no assunto. Seria só apontar um infeliz e falar “isca” que, pronto, os dois voariam na sua garganta feito lobos. Pensei, revirei, caraminholei, mas naquele momento não imaginei ninguém pra dar um fim, portanto, naquele dia salvei foi três vidas, em vez de duas. Esses dois, hoje, estariam mortos, pois não havia mais ninguém à vista. Não fui herói, não, pois me arrisquei muito pouco. O herói aqui é a figura do surfista, entendam bem, a figura do sujeito que, literalmente, leva a tábua da salvação.

Além dos dois potenciais matadores, tirei outras dezenas dessa encrenca ─ sempre tomando muito cuidado, porque é fácil perder o controle da situação. Com o desespero não se brinca.

Uma vez, surfando na praia de Pitangueiras, vi um banhista em maus bocados. Remei rápido em sua direção, porém, segundos antes, nele chegou o salva-vidas. O sujeito em apuros, forte, agarrou o salva-vidas que, sabiamente tomou ar e logo afundou, escapou por baixo, porque afundar era a última coisa que o afogado queria. E nessas, o que primeiro emergiu foi o pé-de-pato do salva-vidas, e foi uma pé-de-patada com tudo na cara do sujeito, que foi a nocaute. O salva-vidas deu-lhe uma gravata e começou a levá-lo tranqüilamente para a praia. Falei rindo: “Nossa! Pqp!”, ao que ele me respondeu: “Tem que ser assim, senão é os dois que morrem”. Nessas aprendi que mergulhar é o jeito de escapar desse abraço da morte. Eu estava com a minha Robert August branca, round tail, 7’.

Uma vez vi um loirinho tentando tirar um moreninho da água, eles estavam num buraco e a correnteza os levava. Remei pra lá, mas foi só ao chegar perto que notei que em vez de um loirinho, eram, sim, dois loirinho, porque o moreninho, para se safar, ia afundando-os alternadamente. Chegava a empurrá-los para baixo e lhes pisava nas costas. Dei-lhes a prancha e fui tirando-os. Os loirinhos estavam em piores condições que o moreninho. Nessas vim saber que os três eram amigos, que o moreninho não sabia nadar e os outros dois, que sabiam, acharam que, juntos, o tirariam dali. Como vêem, não tiraram, e por pouco não morreram. Eu estava com a minha Hobie azul, swallow, 6’8”.

Mas a pior barra que passei foi em Cambury, em meados da década de 70. Eu havia almoçado um grude medonho no meu barraco e logo voltara para a praia. O mar estava lindo, grandaço, com dois metrões bem servidos vento contra, e eu queria fazer a digestão da gororoba indigerível olhando o mar, para depois ir para o canto esquerdo pegar as esquerdonas longas que começavam a quebrar pra fora da ponta do ilhote. O plano foi atrapalhado logo ao pisar na praia, mais para o canto direito. Vi dois sujeitos lá no fundão, na linha da arrebentação, e na certa eles se afogavam. Fazer o quê? Naquele tempo, acho que nenhum salva-vidas tinha pisado ali. Era eu e mais ninguém, fora a minha Dick Brewer verde e branca, pin, uma gun 7’6”. Pulei na água e varei a arrebentação dando tudo o que tinha, pois o tempo contava. Quando cheguei a eles, vi que estavam nas últimas. Aí lhes disse a célebre frase: “Sosseguem, que agora vocês não morrem mais!”, mas dessa vez eu não estava tão convicto, um super-homem de merda. Estavam engasgados, com os olhos roxos e praticamente sem forças.

Bom, o jeito foi levá-los ainda mais pra fora, pra trás da arrebentação, para que pudessem recuperar o fôlego. Conseguimos. Descansaram.

E aí? Como eu não tinha leash, o que me garantia que conseguiríamos voltar para a praia sem perder a prancha nas inevitáveis pancadas daqueles ondões? Os dois caras eram grandes, um até era gordão, e já estavam com a respiração boa. O jeito foi falar-lhes que iríamos juntos para o raso, que eu os puxaria pela quilha e eles que ajudassem batendo as pernas, mas que uma certa hora as ondas nos quebrariam em cima e, nessa hora, que se agarrassem à prancha como às suas vidas, que não a largassem de modo algum, acontecesse o que acontecesse.

Sabe quando eles largaram a minha Brewer?

Quando seus joelhos encostaram na areia, mesmo assim precisou eu chegar e falar rindo que já estava tudo bem.

Salve a Dick Brewer! Quem os salvou foi ela. Eu só a levei a eles.

Salvem todas as nossas pranchas, as antigamente também chamadas tábuas de surf, as tábuas de muitas salvações. Elas salvam o homem da fraqueza, da depressão, da futilidade, de ambientes ruins, e muitas vezes salvam da morte.

Por tanto, meu amigo, não se meta a bancar o salva-vidas sem sê-lo, porque é bem provável que você se ferre junto. Se for uma criança em apuros, claro que tudo bem, porque, além de serem fáceis de controlar, por elas, mesmo desconhecidas, a gente arrisca tudo. Se ele for adulto, e essa parada sobrou pra você, procure antes uma prancha e, seja lá de quem for, pegue-a e vá. Ninguém reclama, já fiz isso muitas vezes.

E nunca se aproxime a ponto do sujeito poder te agarrar, nunca. Hoje temos leash, então é moleza ─ é chegar e jogar a prancha para ele, e dali sair puxando-o de longe. Se ele te agarrar, já viu, tome ar e afunde bastante, que ele te solta.

Mas o ideal mesmo, meu amigo, é ter na praia um salva-vidas surfista, que nem o Rafael, que trabalha em Cambury. Nasceu e foi criado ali. Surfa desde criança, que eu lembro, e surfa lindo pra burro. E é o melhor salva-vidas que conheci na vida, pois raramente põe o pé na água. Sempre ligado, sabe prever o perigo e, antes que o banhista se meta onde não se deve, ele já está lá apitando e botando ordem na coisa.

Salve, portanto, o Rafael, e todos os salva-vidas do mundo!

EFICIENTES


A ADD (Associação Desportiva para Deficientes), por meio do esporte adaptado visa melhorar a qualidade de vida do deficiente físico e reintegrá-lo à sociedade. Segundo o Censo 2000, realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), cerca de 27,5 milhões de brasileiros apresentam algum tipo de deficiência física, mental, visual, auditiva ou múltipla (quando o mesmo indivíduo apresenta duas ou mais deficiências).

A ADD tem trabalhado para ajudar também na divulgação do surf adaptado. O pontapé inicial foi, junto com a American Airlines, apoiar financeiramente o surfista guarujaense Alcino "Pirata" Neto nas viagens internacionais para participar dos eventos mundiais de surf e no desenvolvimento da modalidade no Brasil por meio da Escola de Surf Pirata.

Pela carência de informação, o atleta começou a fazer demonstrações e exibições do surf adaptado, com ou sem prótese, além de criar sua própria escola no Guarujá para ensinar pessoas com e sem deficiência a surfar.

"Temos acompanhado através do trabalho em parceria da ADD e Pirata uma grande evolução do surf adaptado no mundo. Ainda não há uma categoria para surfistas deficientes, mas recentemente um grande passo foi dado com a criação do programa "Surf for All", desenvolvido pelo pirata junto com a ISA (International Surfing Assossiation), que apresentou mundialmente como "ISA Adaptive Surfing Development", disse Karina Mosmann, coordenadora de comunicação da ADD.

Segundo Pirata, foi lançado um DVD didático, que busca a implementação do esporte adaptado para portadores de necessidades especiais dentro das associações e federações de todo mundo. Mais DVD's estão sendo desenvolvidos e contam com o apoio da ISA, Quiksilver Foundation, Hang Loose, Reef e ADD. Vale lembrar que o surfista Robson Careca também trabalha há algum tempo com a inclusão do surf adaptado em seu projeto "Surfespecial" realizado na praia da Baleia, litoral norte de São Paulo. Toda essa onda merece o apoio geral da comunidade.



Mais informações:
http://www.add.org.br
http://piratasurf.com.br
http://surfespecial.com.br

13 perguntas para... Taj Burrow


TAJ BURROW NUNCA GANHOU UM TÍTULO MUNDIAL.

POR QUE NÃO?
PORQUE DESPERDIÇOU MUITO TEMPO FAZENDO FILMES DE SURF. PORQUE A VITÓRIA VEIO MUITO CEDO E FACILMENTE. PORQUE O HEAD JUDGE ENCANAVA COM ELE. POR CAUSA DE KELLY SLATER. POR CAUSA DE ANDY IRONS. PORQUE ELE NÃO QUERIA MUITO. PORQUE TÍTULOS MUNDIAIS SÃO INÚTEIS DE QUALQUER JEITO.
TALVEZ POR TODAS ESSAS RAZÕES. TALVEZ POR NENHUMA DELAS.
TALVEZ ISSO IMPORTE.
TALVEZ NÃO.
ELE PASSOU 12 ANOS ENTRE OS TOP 5, FEZ MAIS VÍDEOS MARCANTES QUE QUALQUER FREESURFER EM TEMPO INTEGRAL E SE DIVERTIU MAIS QUE NINGUÉM ENQUANTO ISSO.
ESSE É O TAJ BURROW E PONTO FINAL.

ENTÃO ESQUEÇA CAMPEONATOS. ESQUEÇA FREESURFER. ESQUEÇA O SISTEMA, OS JUÍZES, OS RIVAIS E A PORCARIA DOS RESULTADOS DE BATERIAS.
ESTAMOS DANDO UM TÍTULO MUNDIAL A TAJ: O DE SURFISTA INCRÍVEL.



01. CONTE SOBRE SEU PRIMEIRO CAMPEONATO DE SURF.
Eu tinha nove anos e competi num evento local em West Australia. Estava na categoria para menos de 18 anos e ganhei com nove. Tenho que admitir que me diverti me exibindo e ganhando dos caras mais velhos. Foi bizarro na hora da premiação, um moleque de nove anos com todos os outros de 18. Me senti bem especial. Foi bom.

02. EXISTIA ALGO COMO FREESURFER PROFISSIONAL NAQUELA ÉPOCA?
Não. Seções de vídeo eram muito importantes para mim, mas não havia a opção de ser um freesurfer. Os caras que eu via nos vídeos ─ como Kelly e Dorian ─ estavam no topo do ranking do Tour.

03. FAZER VÍDEOS TE TORNOU UM COMPETIDOR MELHOR?
Acho que sim. Você pode assistir às filmagens assim que sair da água, então aprende o que fica mais bonito e o que fica feio. Você descobre o que é estiloso olhando da praia e o que o público e os juízes gostam de ver. Era assim que eu tentava surfar.

04. VOCÊ SE CLASSIFICOU PARA O WT NA PRIMEIRA TENTATIVA. ERA MAIS FÁCIL ANTIGAMENTE?
Com certeza. Classifiquei-me com muita facilidade e por isso meu desempenho caiu naquele primeiro ano. Não achei que estava pronto. Foi uma decisão bem estranha, pensando bem. Mas me classifiquei tão facilmente que pensei: “É, posso fazer isso de novo”. E fiz.

05. TALVEZ O SEU SUCESSO EM COMPETIÇÕES TENHA VINDO MUITO FACILMENTE NO COMEÇO.
Concordo plenamente. Eu queria surfar muito. Tudo com o que me importava era melhorar. Parece que todos aqueles resultados caíram no meu colo. Mesmo no meu segundo ano no Tour, quando acabei em segundo e Occy ganhou, tropecei naquele resultado. Acabei vice tão facilmente que, hoje em dia, penso: “Uau, se tivesse tentado um pouquinho mais eu poderia ter ganhado facilmente”. Naquele momento da carreira eu achava que: “Ah, um desses títulos mundiais vai acabar caindo no meu colo também”. Mas só ficou mais e mais difícil.

06. VOCÊ SE CANSA DE VIAJAR INCESSANTEMENTE? DE NUNCA ESTAR EM CASA?
A vida é assim. Às vezes é desgastante, mas daí você passa um tempo em algum lugar que gosta... para mim, Bali ou West Australia. Toda vez que volto a um desses lugares, recarrego as baterias rapidamente e fico pronto para outra. Não parar em um só lugar está incorporado em mim. Tenho mais medo de me aposentar do que entrar no próximo avião.

07. VOCÊ SENTE QUE ESTÁ CHEGANDO PERTO DO FIM DE SUA CARREIRA?
Um pouco. Mas ainda me sinto bem para continuar por anos. Viajando com um treinador e me cuidando, não pareço estar pior do que nos anos em que comia coisas gordurosas, não alongava, não treinava nem nada. Antes, eu só competia e surfava. Provavelmente estou melhor agora por estar me cuidando. Mas só quero continuar se ainda tiver chances de levar o título.

08. É ESTRANHO VER CARAS COMO DANE E DORDY ESTOURANDO NA MÍDIA? QUERO DIZER, VOCÊ JÁ FOI UM DELES. O QUE ISSO FAZ DE VOCÊ HOJE?
Essa é a nova geração. Tudo que você pode fazer é abraçar. Não dá para se zangar por não ser mais esse cara. Sou um grande fã de surf bom. Não pego uma boneca de vudu e zico qualquer um, como teria feito antes, só observo o bom surf. É muito bom.

09. VOCÊ PASSOU 12 ANOS ENTRE OS TOP 5 DO TOUR, O QUE TALVEZ SEJA UMA CONQUISTA MAIOR DO QUE UM ÚNICO TÍTULO.
É, realmente. Mas... não há resposta para isso. Porra, quero ganhar um. Mudei o jeito como surfo e fiz tantos sacrifícios. Mas se não acontecer é porque não deveria acontecer. Não vou ficar sem conseguir dormir por causa disso, como acontecia antes.

10. E O QUE ACHA DA IDÉIA DE QUE TALVEZ TIVESSE SE SAÍDO MELHOR SE NÃO ESTIVESSE ENVOLVIDO EM TANTOS OUTROS PROJETOS ─ SÓ SE CONCENTRASSE NO TOUR?
Sem ressentimentos. Eu não mudaria nada. Quis fazer isso e me dediquei muito aos dois, então o que acontecer, aconteceu. Estou feliz com o modo como desenvolvi minha carreira.

11. VOCÊ ACHA QUE FATORES EXTERNOS TE PREVENIRAM DE GANHAR UM TÍTULO MUNDIAL?
Bom, recentemente me disseram que o head judge da ASP (Perry Hatchet) basicamente implicou comigo durante toda a minha carreira. Outros juízes já me disseram isso. É um choque. Quero dizer, todo mundo tem baterias controversas, mas eu tive algumas muito estranhas. E ser avisado por outros juízes só me deixa meio indignado de penar que talvez alguém tenha me roubado.

12. ESPECIALMENTE QUANDO VOCÊ FOI VICE DUAS VEZES. ESSAS CONTROVÉRSIAS FAZEM UMA GRANDE DIFERENÇA.
E foi descarado, ainda por cima. É difícil de engolir. Odeio ser o cara que reclama de ser roubado, mas é tão estranho ouvir que um juiz implicava comigo. Já contratei treinadores e tentei mudar o meu surf de acordo com o critério dos juízes ─ que era realmente tedioso ─ só para ganhar um título mundial. Fiz tudo que dava para encaixar nos critérios que os juízes queriam. E agora, perto do fim da minha carreira, o cara é demitido e todos os juízes vêm me dizer essa merda. Estou abismado. É doentio.

13. O QUE ESTÁ ACONTECENDO DE MAIS INTERESSANTE NO SURF AGORA?
Um pouco de tudo. Me empolgo bastante quando há grandes competições como o Kustom Airstrike e o Innersection, porque sei que as pessoas vão trabalhar duro para vencê-las. Me animo também com filmes como Modern Collective, porque os melhores jovens surfistas terão as melhores seções. E também os vejo se adaptando para as competições, para entender que estratégia usarão quando estiverem vestindo a lycra. É demais.

Billabong Pipe Masters 2010


NUM DESFECHO IMPROVÁVEL NO BACKDOOR, JEREMY FLORES DERROTA KIEREN PERROW PARA FICAR COM O TÍTULO DE CAMPEÃO DO BILLABONG PIPELINE MASTERS 2010. JOEL PARKINSON FATURA O TRICAMPEONATO NA TRÍPLICE COROA HAVAIANA. BRASIL TERÁ CINCO REPRESENTANTES ENTRE OS TOP 32 EM 2011.



Depois da conquista arrebatadora do décimo título mundial (e do campeonato) na penúltima prova da temporada, em Porto Rico, Kelly Slater chegou como favorito absoluto à etapa final do ASP World Tour 2010, em Pipeline, no Hawaii ─ onde já venceu seis vezes. Com o campeonato inteiro disputado nas direitas de Backdoor, o americano cumpriu o script até a semifinal, em que encarou seu companheiro de equipe Jeremy Flores, da Ilha Reunião. A um minuto do fim, o líder Kelly tinha a prioridade e só um erro grosseiro poderia impedir a presença do maior surfista de todos os tempos na final. As séries demoravam e as direitas de 1,5 metro já estavam um pouco esfareladas pelo vento. Todos que acompanham, mesmo de longe, o universo do surf, acharam que era outra barbada e que Slater coroaria seu ano com mais uma vitória em Pipe. Mas todos se enganaram. Uma série apontou no horizonte, os dois surfistas se movimentaram e, inexplicavelmente, Kelly deixou Jeremy remar na primeira. O francês, que precisava de 8.6 pontos para assumir a liderança, fez a lição de casa e entubou com classe e eficiência, ganhando nota 9.37 dos juízes. Slater depois explicou que pensou que viria outra onda atrás, mas não deu conta que naquele dia, com o swell baixando, a maioria das séries vinha com apenas uma onda.

Na outra chave, Dane Reynolds e Kieren Perrow duelaram pela segunda vaga na final. Conhecido por sua habilidade e coragem nos tubos pra direita, com atuações épicas no passado no mesmo Backdoor, o veterano Perrow acabou com as esperanças de Dane de desabrochar no Tour. Os australianos, que já estavam comemorando o tri de Joel Parkinson na Triple Crown desde as quartas (com a derrota de Ace Buchan para Slater), aumentaram o coro para apoiar Perrow contra Flores.

Mas não estava fácil apostar na lógica e, mais uma vez, a poucos minutos do término, o francês estava atrás na bateria e sem prioridade quando uma série apontou no horizonte. Cometendo o erro de avaliação inverso ao de Slater, Perrow foi na primeira, mas falhou ao tentar completar o tubo. Enquanto remava de volta para o outside, viu Flores entubar do começo ao fim na onda de trás, para virar a disputa e faturar sua primeira vitória no Tour ─ e a primeira de um europeu na história do Pipeline Masters, que este ano completou 40 edições e homenageou Andy Irons, tetracampeão do evento. “É um sonho. Venho há muito tempo para o Hawaii, é meu lugar favorito no mundo. Eu sabia que não podia desistir mesmo estando atrás. O Pipe Masters é tudo. Estou muito feliz”, disse o jovem de 22 anos, chamado pelos íntimos (incluindo a namorada brasileira, Bruna Schmitz) de “Mimi”.


OS BRASILEIROS
Os Tops brasileiros Adriano de Souza e Jadson André tiveram atuações medianas e foram eliminados na terceira fase, finalizando a priva na 13ª colocação. Enquanto Mineirinho foi surpreendido por Perrow com um bom tubo no final da bateria, Jadson sucumbiu diante de Damien Hobgood no confronto seguinte. Heitor Alves foi convidado pela organização por ter sido o melhor surfista do WQS, mas perdeu para Parko na segunda rodada e acabou em 25º lugar na prova. Em 2011, o Brasil terá cinco representantes no World Tour: Adriano e Jadson, classificados pelo ranking principal, e Heitor, Raoni Monteiro e Alejo Muniz, qualificados pelo ranking do WQS.


TRÍPLICE COROA HAVAIANA
Depois de perder seis etapas do Circuito Mundial por causa de um profundo corte no pé no primeiro semestre deste ano, Joel Parkinson chegou ao Hawaii com poucas pretensões, mas acabou protagonizando um dos retornos mais impressionantes da história. No primeiro campeonato que disputou, a etapa do WQS em Haleiwa, ele tirou nota 10 na primeira onda que surfou e acabou vencendo a primeira jóia da Tríplice Coroa Havaiana. Com a nona colocação em Sunset e um 13º em Pipe, Parko garantiu seu terceiro título seguido da Triple Crown, um feito e tanto para quem tinha dado o ano como perdido. Seu conterrâneo Julian Wilson, promessa da nova geração australiana, ficou com o título de “Rookie of the Year” dos três prestigiados eventos da perna havaiana do Circuito Mundial e também garantiu vaga na elite este ano.

Riobeleza


Quem nasce no Rio de Janeiro e cresce rodeado pelo mar, lagoa e morros tende a olhar para toda essa beleza como se fosse comum e natura”. É dessa forma que o fotógrafo poeta Félix Richter abre o livro Rio de Janeiro por Hans Donner, este, editor convidado dessa bela obra de arte.

O livro pode sim ser considerado uma obra de arte. Em fotos incríveis, de beleza e sensibilidade raras, o Rio de Hans Donner mostra o olhar de um forasteiro que escolheu a Cidade Maravilhosa como casa, que o acolheu desde 1975, e que conhece como poucos, com seu calor humano, alegria e generosidade. Começou ali uma história de amor. Hans, com seu trabalho inovador na jovem carioca TV Globo, trouxe técnica e estilo ao conceito de design institucional, ao qual foi agregando influências cariocas: cores e curvas, ritmo, alegria e humor.

Dividido entre as paixões que Donner tem pelo Rio, o livro passa por Copacabana, o Carnaval, o Brasil Imperial, o Carioca, a Magia do Rio, a Natureza e o Futebol: os capítulos exibem textos inteligentes e emocionados, sempre apoiados na admiração que Donner tem pela cidade onde formou família.

Hans Donner é um estrangeiro que ama a cidade carioca. E no meio desse amor, o surf e os diferentes esportes praticados a céu aberto são mostrados na forma peculiar desse alemão criado na Áustria, que decidiu vir ao Brasil por causa da magia do futebol brasileiro e que evidencia seu orgulho de estar no Rio de Janeiro: “Se o grande objetivo do ser humano é ser feliz, podendo utilizar todas as suas potencialidades para distribuir essa felicidade, então posso dizer que no Rio alcancei a grande meta da existência. Sinto-me integrado a esta bela cidade. Sou parte dela, vivo no seu espírito e, por isso, gostaria de declarar orgulhosamente: sou carioca”.



Dessa vez é diferente. Ao invés de insônia o fuso-horário deixa os olhos pesados enquanto o dia ainda não foi embora. Não vai durar mais do que cinco ou seis dias e aos poucos o corpo vai se acostumar a ficar acordado até depois da meia-noite. Enquanto isso não acontece acordo de madrugada e espero o dia clarear escrevendo ─ (“Truth Doesn’t Make a Noise” ─ White Stripes). Já é minha décima temporada aqui. Falar que parece ontem que cheguei nessa ilha pela primeira vez é muito clichê, e muito longe da verdade também. Faz tempo. Em dez anos aconteceram algumas coisas, muitas coisas talvez. Uma década se foi desde minha primeira vez aqui e ninguém pode negar que uma década é bastante tempo. Kelly Slater tinha cabelo, Dane Reynolds ainda não era o Dane Reynolds e Andy Irons ainda estava vivo. Talvez ainda não fosse o Andy Irons também. É bom lembrar do que aconteceu no passado, valorizar o que ficou pra trás e procurar entender porque e como chegamos até aqui. E apesar da anestesia aplicada por lembranças nostálgicas temos que cantar sobre nosso próprio tempo, como ouvi dizer naquele filme baseado na vida de Bob Dylan: I’m Not There. Filmezinho confuso diga-se de passagem. Mas mesmo assim é um bom conselho. É preciso valorizar o que acontece hoje, viver o nosso tempo, a nossa era.

Alguns acontecimentos recentes abriram meus olhos com urgência para esse ponto de vista. Kelly Slater dez vezes campeão do mundo e Andy Irons morto num quarto de hotel. Os dois maiores nomes da ‘minha época’ marcam mais uma vez a história, de maneiras completamente diferentes. Daqui pra frente poderei contar como foi quando um dos maiores anti-heróis do surf morreu e quando o esportista mais dominante do mundo venceu seu décimo título no nosso ‘esporte’. Isso aconteceu no meu tempo.

A notícia da morte de Andy Irons recebi no aeroporto internacional de Madrid. Estava em um trem que leva os passageiros de um terminal a outro dentro do próprio aeroporto. Em pé dentro do vagão, segurava a barra acima da minha cabeça pra me equilibrar e carregava nas costas minha mochila, mais pesada que de costume. Minha mala acabou ficando cheia demais e até um par de tênis veio parar nas minhas costas. Alejo Muniz viajava comigo e foi ele quem quebrou o silêncio de repente enquanto eu largava minha mochila no chão pra aliviar a dor nas costas. Ele olhou pra mim dizendo: “Ah, sabe quem morreu?”. Fiz ‘não’ com a cabeça já imaginando centenas de pessoas diferentes. Amigos, pessoas conhecidas, parentes de amigos. Dá sempre um frio na barriga quando alguém faz essa pergunta. “O Andy Irons, parece que foi em Dallas, num hotel. Estava com dengue”, respondeu ele. Esse não tinha passado pela minha cabeça. Claro que minha resposta foi a mesma que a sua quando recebeu essa notícia: “O quê!?!?”. Não consegui entender aquilo de imediato e aquela notícia silenciou a conversa. A idéia custou a tomar forma. De imediato parecia mentira, mas depois minha própria mente se encarregou de fazer a notícia ser levada a sério. Sabe, certas pessoas não combinam com a morte, parecem não se render a essa condição. Nossos ídolos são assim, são heróis e heróis não morrem. Por isso não conseguia deixar claro pra mim mesmo que Andy Irons não estava mais vivo. Aquele turbilhão de notícias na internet, cerimônias e homenagens em várias partes do mundo me ajudaram a realizar que uma era havia terminado. Comoção generalizada na comunidade do surf. Um dos maiores nomes da nossa geração morreu assim como viveu, como um ‘rock star’.

E nada poderia fazer um contra-ponto mais irônico com a morte de Andy Irons do que o décimo título do careca. O melhor competidor de surf de todos os tempos vencia seu décimo título poucos dias depois da morte de seu maior rival. Inacreditável. Que Kelly Slater seria dez vezes campeão muita gente acreditava, mas ninguém imaginava que seria durante uma semana tão marcante. Kelly Slater foi meu primeiro ídolo supremo no surf, lembro até hoje daquele cutback em Backdoor em que ele volta da rasgada batendo dentro da boca do tubo. Acho que é no What Now?! do Taylor Steele. E veio um título atrás do outro, recordes se quebrando ano a ano a cada vitória. E há poucas semanas em Porto Rico seu décimo título mundial. Assisti ao vivo pela televisão e simultaneamente pelo computador tudo que acontecia enquanto Kelly levava mais um caneco da ASP. Emocionado, com centenas de câmeras à sua volta transmitindo imagens para todo o mundo em tempo real, o campeão mundial mais velho da história (que também já foi o campeão mundial mais novo, em 1992, aos 20 anos) marcava o fim de uma era. O 10º título de Kelly é um marco histórico. Se ele vai parar ou continuar competindo no ano que vem, ainda não sabemos ao certo. Mas seu maior rival não vai mais estar lá. A era Kelly Slater está muito próxima do fim, quer acreditem ou não. Mas a era Kelly/Andy terminou.

Fico feliz por ter assistido e acompanhado toda a evolução do maior de todos os tempos e seu rival. Dois personagens, duas personalidades e dois dos maiores talentos já vistos em cima de uma prancha. Ter vivido no mesmo tempo desses gigantes é um privilégio. O maior de todos os tempos e o talento agressivo do ‘rock star’ que bateu o invencível durante o auge de seu reinado. Isso tudo agora é história. História que vi com meus próprios olhos.

Sentado na cama após terminar esse último parágrafo olho pela janela e o sol já brilha lá no alto, 8h02. Já ficou tarde pra Pipeline, cair lá depois das oito é sinônimo de muito crowd, muita espera no outside e pouco (nenhum) surf. Pego a bicicleta e saio pelo portão, manobro desviando de algumas árvores e em exatos três minutos estou de frente para o mar. Quase ninguém na água, direitas e esquerdas surpreendentemente longas para o padrão do North Shore. Sunset Point à oeste, V-Land ao longe para o lado leste e um pedaço de tranqüilidade bem no meio do circo, bombando paredes sólidas de seis a oito pés. Dou meia-volta pra buscar minha prancha sem pressa e com um sorriso no canto da boca.

CARTA A UM JOVEM SURFISTA

Não procure respostas que não podem ser dadas porque não seria capaz de vivê-las.
E a questão é viver tudo. Viva as perguntas agora. Talvez assim, gradualmente, você sem perceber, viverá a resposta num dia distante.

Rainer Maria Rilke (1875 – 1926)

Tudo indicava que seria uma carona como outra qualquer. Ir à praia, surfar, limpar bem os pés para entrar no carro e voltar conversando sobre nossas infindáveis fantasias em torno do surfe.

Com 16 anos, espremido no banco de trás, eu ouvia mais que falava e absorvia o que dava.

Passamos por um campeonato no Postinho e paramos pra assistir um pouco.

Meus novos ídolos estavam disputando as semifinais da categoria Júnior: Fedelho, Marquinhos ADN, Serginho, Guto, Beto e a nata do surfe da Barra no meio dos anos 80. Testemunhar aquilo me bastava.

Alexandre olhou pra mim e perguntou com naturalidade, “Bruno, por que você não se inscreveu?”.

Dei de ombros, um pouco em choque com a pergunta.

O que faria eu no meio daquelas feras?

Sem permitir que me munisse de muitas desculpas, Alexandre se adiantou, “no próximo, você me avisa que eu pago sua inscrição...”.

Naquele exato momento, minha vida mudou completamente.

Alexandre fazia as melhores capas de prancha do mercado, Capas Avant Garde, sofisticadas como o nome, e via o surfe duma forma totalmente diferente da minha ─ profissional.

Tudo pro Alexandre era sério: surfe, skate, música, sua faculdade, sua família.

Eu levava tudo na brincadeira.

Aos poucos fui me familiarizando com o que ficava ao redor do surfe, revistas, filmes, campeonatos, surfistas.

Pela primeira vez, vi alguém que não saía recortando as revistas e colando na parede ou nos cadernos. Alexandre era assinante da Surfer e guardava cuidadosamente cada uma delas, não apenas isso, sabia até a seção de cartas de cor e salteado.

Gostava de citar frases de efeito do Shaun Thomsom, Tom Curren e Rabbit.

Folhear revistas pra mim era um mero exercício estético, ver fotos, estudá-las e nada muito além disso.

Inglês era uma língua complicada demais e só de pensar em ler aquele calhamaço, já me cansava.

Subitamente, aquilo fazia sentido e de alguma forma me ajudava bem mais do que apenas surfar bem ou mal.

Foi graças a ele que minha mãe permitiu que viajasse para a Guarda em 85 (ou 86), eu, ele e a namorada.

Segundo ele, na Guarda era tudo barato, ficaríamos numa casinha de pescador um mês inteiro, comendo PFs e surfando até não agüentar mais.

Chegando lá, sua namorada ficou horrorizada com a simplicidade e higiene das casinhas, nos hospedamos no primeiro hotel da Guarda, recém-inaugurado, ficamos ali por poucos dias, a grana acabou, a paciência da namorada dele também, foram embora os dois e eu fiquei lá o resto do mês vivendo de favor, sobras e quilos de bananada.

Uma experiência pra toda vida.

O tempo passou e nos afastou, todo final de ano recebia um cartãozinho de natal assinado por ele.

Às vezes ligava e perguntava se eu estava estudando, por que não?, surfe era passageiro, uma boa formação é fundamental, dizia ele.

Alexandre tinha uma voz grave e impostada, de locutor de telejornal, vocabulário vasto e uma preocupação genuína com meu futuro. Ele já tinha se formado, estava muito bem empregado e noivara com a namorada de garoto, já não surfava como antes.

Um dia os cartões deixaram de chegar.

Cláudio, um amigo em comum que também afastou-se, ligou pra dizer que Alexandre não estava bem, informou o hospital e número do quarto.

Através do surfe fazemos muitas amizades que vêm e vão como ondas, no balanço do mar.

Eu tive o prazer e privilégio de ter um amigo de verdade durante alguns anos importantes na minha formação como surfista e como homem.

Nos seus últimos momentos, Alexandre confessou a sua namorada que deveria ter surfado mais, assistido mais filmes de surfe, lido mais revistas de surfe.

Por uma dessas coincidências cósmicas, Alexandre e Andy Irons foram enterrados no mesmo dia.

Duas vidas diametralmente distantes e opostas.

Lá em cima decorei o texto com um trecho do livro de Rilke, Cartas a um jovem poeta, dez cartas que escreveu a um rapaz cheio de dúvidas sobre poesia ─ e a vida.

Alexandre foi meio Rilke pra mim.

MICHAEL PETERSON ─ O Gênio das Sombras

Na metade inicial dos anos 70, um jovem humilhou os melhores surfistas do mundo vencendo todos os grandes campeonatos na Austrália. “Cinco anos depois de Nat Young ser batizado como ‘The Animal’, um garoto de Coolangatta e seu surf brutal e frenético fizeram Nat parecer um coala” (Sean Doherty¹).

Brutais eram seus mil talentos e fantasmas. Shaper inovador precoce. Pioneiro-mágico a entubar por mais de 10 segundos. Tímido patológico e rebelde indomável, avesso à publicidade, multidões e fama do nascente surf pró. Usuário diário de drogas, o que destruiria sua carreira, análise apenas em parte correta. Porque ninguém desconfiava que Michael Peterson ─ a chama mais incendiária e breve da história do surf ─ enfrentava um inimigo bem mais poderoso: a loucura.


Queensland, Austrália, dezembro de 1951.
Numa noite gelada, a garçonete Joan caminha de volta para a casa da mãe, que reencontra após fazer 18 anos. Sem conhecer nada dos homens e da vida ─ passara 11 anos com as freiras, após ser abandonada pela mãe alcoólatra ─ ela não teme os três homens que se aproximam. Que vão agarrá-la.

Meses depois nasce, sem pai, o menino Michael. Pelo filho, Joan tenta criar um lar e junta os trapos com o trabalhador de bicos diversos, Sid Peterson. Com ele tem outro menino, Thomas. Mas perde logo após o parto ─ pela pobreza ou pelas surras do violento e bêbado Sid ─ duas meninas. Um dia ela cria coragem e foge do marido para o lugar de sua infância, Tweed Heads, praia vizinha a Coolangatta. Joan se mata em três empregos, mas consegue criar os meninos e as filhas que vingaram do ex-marido, Dorothy e Denice. Mais que isso, os garotos encontram uma direção ao ingressarem na nobre cultura dos surf clubes.

Aos 13 anos, Michael entra para o Surf Lifesaving Club de Greenouth. Sua impaciência e distração o tornam um péssimo salva-vidas, mas ele vira exímio nadador e bodysurfer. E, claro, inicia-se no surf no pointbreak local.

Pouco depois, os garotos de Coolangatta ─ Michael, seu irmão Thomas e os parceiros Pete Townend e Wayne Bartholomew (futuros campeões mundiais pró, em 1976 e 78) ─ buscam ondas mais desafiadoras. Tornam-se fiéis de uma onda demoníaca, Kirra. Tubaços rápidos e impiedosos. Ali o menino que nasceu sem pai torna-se rei. “Uma onda tão formidável pedia alguém cujo nome se transformasse em sinônimo desse pico, como Gerry Lopez e Miki Dora seriam sinônimos de Pipeline e Malibu. E "ninguém seria mais corajoso, extremo ou ficaria mais tempo dentro dos tubos de Kirra que Michael Peterson”, afirmou Nick Carroll².

Adolescentes pobres, sem condições de comprar uma prancha, os irmãos Peterson montam uma oficina de reparos e logo estão shapeando. O negócio prospera graças ao gênio de Michael: ele diminui drasticamente o tamanho das pranchas (para menos de 6 pés) e tem idéias simples e brilhantes como deslocar a curvatura máxima para o meio da prancha. Assim pode acelerar e frear com facilidade, “o pé da frente significa vai, o de trás, pára”.¹


1971.
Os grommets Michael, Pete e Wayne dominam um campeonato interclubes em outra onda tubular sagrada australiana, a 20 minutos de Kirra: Burleigh Heads. Os locais, homens com bagagem no Hawaii e donos de vários títulos nacionais, ficam chocados. “Michael entrava e saía de cavernas assustadoras sendo literalmente cuspido de seções impossíveis”, revelou Wayne.

Fora d’água, no entanto, algo não ia bem. “Ele me pegava cedinho para checarmos as ondas, já fumando um baseado e com o som à toda em Deep Purple ou Black Sabbath. Michael era hiperativo, eram seis da manhã e parecia viver às dez da noite de sábado”, lembra Wayne. A bizarrice só aumentava. A molecada, de dentro do carro, curtia dar tiros nas placas de trânsito. Um dia Peterson decidiu mudar o alvo. Parou na praia, pegou seu rifle e escondeu-se nas dunas como um sniper. Seu alvo? As pranchas solitárias dos surfistas que caíam. Acertou dois tiros na prancha de um conhecido, que nadava atrás de sua prancha. Sorte que o cara escapou...

Após deixar a escola, que mal freqüentava, aos 16 anos, Michael estudou fundo shape e os ídolos Nat Young e Wayne Lynch. Logo superou-os com o estilo mais agressivo, veloz, com mais manobras e Power do que qualquer um achava possível. Os braços de orangutango e mãos-pratos lhe dão uma remada infernal e Peterson ainda vira um mestre da intimidação no outside.


De 1973 a 75, ele vence todos os campeonatos da Austrália,
incluindo o mais rico evento até então, o Coca-Cola Surfabout (1974) e três triunfos seguidos (73/74/75) no mítico evento de Bell’s. bate os melhores do mundo ─ compatriotas, havaianos, americanos e sul-africanos. Já rebatizado de MP, não brilha, porém, no Hawaii, apesar de mandar bem em Pipe (Backdoor) e Sunset.

O tri em Bell’s marca o apogeu da fúria competitiva de Peterson. “Na semifinal ele pegou umas 15 ondas. 15 ondas no Bowl, em Bell’s! é uma remada de volta ao pico de 200 metros!”, lembra Wayne.

A mesma praia presenciaria, no entanto, a piora da doença que ele possuía sem saber: a esquizofrenia, nome científico para loucura. A doença somava-se à timidez enorme, que o fazia surgir na praia segundos antes das baterias e evitar premiações. Assim ocorre após esse 3º triunfo em Bell’s. Paranóico, Michael esconde-se no estacionamento acreditando que cuspiriam nele ao receber o cheque de campeão.

Em 1976, MP ainda vence a abertura do 1º circuito mundial pró, na Nova Zelândia, mas o maior surfista do planeta não dá as caras em vários campeonatos. É visto mais chapado de maconha, ácido ou heroína. “Esse cara fez os patrocinadores fugirem do surf”, acusou-o na época Shaun Tomson, o sul-africano que lutava por uma boa imagem do surf e seria campeão mundial em 77. O cabelão, bigode, roupas largadas, vício e reclusão de Peterson eram tudo o que Shaun combatia. Mas “para toda uma geração de garotos, o rebelde Peterson significou o que nenhum superstar certinho e limpo jamais iria significar”, sentenciou Nick Carroll².


O último show. Stubbies Classic, 1ª etapa do Tour mundial de 77.
Burleigh Heads bomba ondas tubulares perfeitas de 6 pés durante todo esse evento histórico, o primeiro com baterias homem × homem. Michael Peterson destrói um a um seus rivais. Bate apertado Wayne na semifinal e domina um jovem Mark Richards (futuro tetracampeão mundial de 97 a 82) na decisão. Foi sua despedia antes de ser consumido pelas drogas químicas e pelas vozes da própria mente; até conversava com elas.

O coquetel terrível explode em sua última e espetacular “bateria” em 1983. Michael dormia no carro, na margem da estrada, quando foi acordado pela sirene da policia. Assustado, pisa fundo. Só vai parar ─ 160km e 35 viaturas (em sua caça) ─ depois, em Brisbane, porque fecham uma ponte. Ao oficial que o detém conta que acabara de fugir com sucesso dos aliens. Ele é preso e depois internado em instituições diferentes, até finalmente diagnosticarem a esquizofrenia paranóica. “Assistir a Michael surfando era assistir a uma pessoa prestes a explodir em milhares de pedaços... e ele explodiu” (Phil Jarratt).

Há 25 anos, MP vive sob os cuidados de sua mãe. Os remédios domaram seus ataques, mas não tiraram as vozes de sua mente. Passa horas no quarto com o rádio ligado. Nunca o desliga, para não ouvir apenas sua própria “canção” doentia. A música do rádio o alivia, assim como uma caminhada diária e as visitas da velha e nova guarda do surf ─ Rabbit, PT, Parko, Slater e alguns outros.

Michael Peterson nunca mais surfou desde a caçada na estrada, em 1983. Nunca mais pôde se refugiar em seu verdadeiro lar, o tubo. O lugar que ele mais amava, como revelou no passado, porque “ali ninguém pode me ver”.



Referências:
(1) Surfer, agosto/09.
(2) The next wave (livro).
(3) Encyclopedia of surfing.
(4) As declarações de Wayne e Jarrat e algumas cenas são recontadas do fantástico livro "MP, the life of Michael Peterson", de Sean Doherty.

LITORAL PAULISTA GANHA PRAIA PROTEGIDA


O Decreto que oficializa a criação do mosaico de UC’s será assinado ainda este ano.

No Ano Internacional da Biodiversidade a comunidade do surf no litoral de São Paulo tem muito que comemorar. No último mês foi aprovado pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema), a criação do Parque Estadual das Restingas de Bertioga. Após dez anos de estudos no meio acadêmico e discussões acaloradas entre o movimento ambientalista e o setor privado, foi instituído em Bertioga-SP a maior área para conservação de uma grande extensão de praia, costão e restingas do litoral paulista.

O Parque criado pela Fundação Florestal (FF) é uma Unidade de Conservação (UC) e terá área total de 9.024 (mil) hectares, ligado por uma única passagem de biodiversidade a Praia do Itaguaré ao topo da Serra do Mar. Estando inserida num importante corredor biológico, além de manter uma fisionomia natural que abriga 98% das restingas da área costeira paulista, a Praia de Itaguaré ainda tem uma das melhores ondas para a prática do surf na Baixada Santista, que a partir de agora estão conservadas para os surfistas das presentes e futuras gerações.

Nesse processo, vale destacar a atuação das ONG’s, movimentos sociais e sociedade científica pelo incessante apoio ao desafio de garantir a proteção ambiental de toda essa área. Representando a comunidade do surf, levantando a bandeira da conservação das praias e oceanos, a organização ambientalista Ecosurf, desde o começo deste ano mobilizou milhares de surfistas e amantes do esporte para contribuírem com o abaixo-assinado que pediu a criação dessa UC.

Através de meio eletrônico (internet) e diálogo direto em eventos do esporte, foi possível coletar mais de 10 mil assinaturas em diversas partes do País e da Baixada Santista. Ainda dentro da proposta da Fundação Florestal (FF) serão criados no entorno do Parque Estadual das Restingas de Bertioga um Mosaico de Unidade de Conservação com Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE) e Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). Essa foi uma vitória para todos os surfistas e uma vitória para todos aqueles que se importam com a continuidade da vida no Planeta Terra.

Atitude dentro e fora d’água.

O surf também é uma atividade geradora de impactos, quer sejam ambientais, sociais ou culturais. Reduzir esses impactos negativos é garantir o desenvolvimento sustentado do esporte conservando o patrimônio cultural e natural das praias onde ele é praticado.

INCONTESTÁVEL


Kelly Slater. Por onde eu começo? Pelas 45 vitórias em etapas oficiais do ASP Tour? Nos anos 90 eu achava que ninguém bateria as 33 vitórias do Tom Curren. Pelo The Quiksilver in Memory of Eddie Aikau que ele venceu num Waimea enorme? Pois para mim, até aquela temporada de 2001/2002, esse campeonato era exclusividade de nomes diferentes como Denton Miyamura, Clyde Aikau, Keone Downing, Noah Johnson e Ross Clarke-Jones. Pela influência absurda, quase uma ditadura, das pranchas estreitas e finas por mais de uma década?

Pelas manobras modernas incorporadas aos campeonatos de um jeito que, num primeiro momento, até os mais inovadores do início dos anos 90 torceram o nariz?

Pelo domínio quase absoluto, durante 20 anos, do Circuito Mundial de Surf Profissional? Ta bom, eu sei. Andy Irons, seu único rival de verdade, venceu o título mundial três anos seguidos, em 2002, 2003 e 2004. Mas Slater foi o mais novo a vencer, em 1992, e o mais velho, agora em 2010. Slater parou durante três anos. Ou seja, de 1992 a 2010, ele venceu dez títulos dos 16 que disputou.

No caso dele, nem gosto muito de olhar através de números e recordes. Prefiro tentar imaginar quem conseguiu, num esporte que exige explosão, flexibilidade, velocidade e resistência, ficar no topo por duas décadas. Teve uma época, nos anos 90, que eu dizia pros amigos, brincando, que ele tinha que ter um defeito. Não era possível! O cara surfava como ninguém. Rosto e corpo de modelo que faz campanha para a Calvin Klein. Olhos claros e sorriso sincero. Inteligente e extremamente articulado. Espirituoso, simpático, coração bom. Ele só podia ser ruim de cama. Alguns riam. Aí veio a Pamela Anderson, depois a Gisele Bündchen e estragaram a minha piadinha idiota.

Em 2009 ele ainda se deu ao luxo de ficar experimentando pranchas diferentes, sendo que algumas eram ruins. Era como se ele estivesse tentando achar uma motivação especial, já que nenhum competidor o ameaçava de verdade na água. E ele já estava com 36 anos de idade. Fiquei com raiva. Depois de ganhar o nono título mundial em 2008, o cara começou 2009 brincando de experimentar pranchas diferentes, pô! Fiquei com raiva porque eu sabia que ele ainda estava surfando um absurdo e, como muitos, torcia pelo décimo título mundial, um feito que, àquela altura, já parecia difícil e improvável.

Eu sou suspeito, mas vou falar ─ quatro quilhas é um bom modelo de prancha. Não tão versátil como a três quilhas, mas é excelente em certas condições. Mas tem que ser boa, e a quatro quilhas que ele trouxe para o Brasil era uma merda. Na praia do Porto, em Imbituba (SC), me deu agonia vê-lo colocar três pranchas na areia e ficar trocando uma pela outra a cada cinco ondas surfadas. Deu vontade de chegar e dizer: “Pô, cara, pára com isso. Pega uma 5’10” squash triquilha, mais larguinha do que as que você tem usado nos últimos cinco anos, pisa forte na rabeta e ganha logo esse décimo título. Depois você volta a brincar de testar pranchas diferentes”.

Acho que ele surpreendeu ganhando o seu décimo título em 2010 surfando como está surfando. Eu pensei que ele talvez conquistasse isso usando a sua experiência, muita tática e um pouco da ajuda dos juízes. Mas não. O cara quebrou o ano todo e venceu por antecipação! Como estava torcendo por ele, cheguei a ficar meio apreensivo quando ele estava na água numa bateria difícil. Em certos momentos cheguei a me perguntar, quando ele remava numa onda, se ele se manteria sólido durante toda a onda e não fraquejaria. Só para constar que, quando ele ficava em pé na prancha, era como se estivesse em outro mundo, em outra dimensão. Não apenas pela performance, mas pela alienação baseada em confiança absoluta. Parecia que ele não traçava nenhuma estratégia na água e não se importava contra quem ele estava competindo. Desde os meus 25 anos de idade, estou com os olhos abertos, de maneira generosa, para fontes diversas de inspiração. Geralmente são pessoas ou feitos de pessoas. Em 1980, durante o Stubbies Pro, em Burleigh Heads, na Austrália, um competidor passou na minha frente indo para a água com uma prancha bem estreita e diferente para a época. Ele arrepiou na bateria. No dia seguinte, no jornal local, uma foto dele dando uma rasgada bonita estampava a primeira página. A legenda da foto identificava o cara: “Peter Droyun, lenda australiana, aos 33 anos, vence a sua bateria”.

Foi um susto. Naquela época, ninguém competia no Circuito Mundial com 30 anos de idade. E eu não imaginava que alguém aos 33 anos poderia ser ágil e, principalmente, moderno dentro d’água. Há uns dez anos, a segunda pancada, em termos de idade. Fiquei de cara quando li que o Roberto Marinho tinha inaugurado a TV Globo com 61 anos de idade. A mais recente inspiração veio na etapa do WT em Trestles, Califórnia. Aos 38 anos de idade, Kelly Slater usou e abusou da borda da sua prancha, cravando ela na água sem dever nada ao Dane Reynolds. No último dia, num mar clássico, perfeito para manobras de todo tipo, ele simplesmente destruiu as ondas com os melhores do mundo de três gerações à sua volta. O final dessa história todo mundo já sabe ─ em Porto Rico, ele venceu mais uma etapa de forma incontestável, com uma nota 10 na final, para não deixar dúvida e vencer mais uma vez por antecipação o título mundial.

ONDE ESTAVA A MATILHA?


Passada a comoção, a emoção e as homenagens, restam os fatos. Andy Irons morreu num quarto de hotel sozinho. Fato. Mas quem permitiu que isso acontecesse? A ASP? Seus patrocinadores? Os organizadores do campeonato em Porto Rico? A companhia aérea, as aeromoças? Os funcionários dos hotéis onde ele se hospedou em Porto Rico e em Dallas? A segurança dos aeroportos? Seus adversários, amigos, companheiros de equipe? Sua família? Seus irmãos de coração do Kauai? O próprio Andy?

Todos têm maior ou menor responsabilidade nessa verdadeira crônica de uma morte anunciada. Tudo bem que Andy não era nenhum santo. Seu envolvimento com drogas não era segredo. Mas o fato é que esse mega-atleta, três vezes campeão do mundo, ídolo carismático pra milhões de surfistas mundo afora, caminhou lentamente na direção da morte sem que aqueles que o cercavam e que poderiam ter interrompido essa maratona macabra dessem um basta e salvassem sua vida.

Dengue, a aparente vilã dessa história, é uma doença de comunicação compulsória. Isso significa que ao menor sintoma é preciso comunicar imediatamente hospital e governo. Isso no mundo inteiro. Se houvesse suspeita de dengue, algum médico teria diagnosticado e esse comunicado existiria. Mas não importa se Irons morreu de dengue, por um coquetel de drogas legais prescritas, de overdose, ou tudo junto. O que mais me chamou a atenção foi que ele ficou dias trancado num quarto de hotel em Porto Rico e não apareceu pra competir nas duas baterias que o aguardavam. Teoricamente passando mal. E, mesmo doente, partiu. Sozinho. Pra morrer num quarto de hotel de outra cidade, fazendo escala a caminho de casa. Ele não foi medicado no hotel? Ninguém chamou um médico? Como o deixaram partir? Como pode essa saga toda acontecer nas barbas do surf mundial e ninguém se mexer pra impedir? Onde está o bom-senso? Onde estavam as pessoas razoáveis? Os que gostam e se importam? Ninguém pra dar uma força numa hora dessas? Alooou...

Nada parecido teria acontecido com um cara como Kelly Slater. Ele nunca daria esse mole. Por mais doente que estivesse, o desfecho teria sido outro. As pessoas que giram em torno do dez vezes campeão do mundo têm bem mais neurônios e teriam agido num piscar de olhos.

Andy Irons é fruto do seu meio. No Kauai ser forte e estúpido ganha mais pontos do que ser inteligente. E sensibilidade é coisa de fresco. Todo mundo sabe que o Wolfpack não passa de um bando de desocupados, bêbados, verdadeira gangue. A relação desses fora da lei com os ídolos havaianos é simbiótica e parasitária. Os caras oferecem proteção (leia-se ondas em Pipeline etc.), um pseudo-patriotismo havaiano, e em troca giram na órbita das glórias conquistadas pelos ídolos, levando uma vantagem aqui e ali.

Esse texto já mudou três vezes. Primeiro eu ia falar sobre o Dane Reynolds. Fiquei encantado com as suas entrevistas, com sua naturalidade, com o fato de ter lido bons livros e ouvir boa música. E também com seu blog. Sem falar, claro, no principal ─ o surf estratosférico de vanguarda. Mas, quando passei os olhos pelo texto do Bruce Irons, postado em agosto no blog, o tema mudou. Fiquei tão impressionado com sua estupidez, seu horizonte mínimo, com a conversa desconexa cheia de bobagens, com as armas atirando, com os samoas bêbados em volta, que pensei em escrever um contraponto entre dois estilos de surfistas opostos. Dane e Bruce. Mas aí o telefone tocou e chegou o absurdo da notícia da morte do Andy. A vida é mais importante do que a morte, eu sei. Mas certas mortes, pelo que nos ensinam, nos ajudam a entender e preservar vidas. A do Andy entra nessa categoria. Fico imaginando quantos não estão com a consciência pesada agora. Falando nisso, onde estava a matilha?

QUEM NÃO GOSTA DE SLACKERS BOM SUJEITO NÃO É


ROLOU, ENTRE OS DIAS 9 E 21 DE NOVEMBRO, A TURNÊ DO SLACKERS NO BRASIL. CONSIDERADO UM DOS MAIORES NOMES DO SKA MUNDIAL, O GRUPO TRAZ EM SEU DNA RITMOS COMO SKA, REGGAE, SOUL MUSIC, DUB, ROCKSTEADY, RHYTHM & BLUES E BOOGALOO. MAS PODE-SE CONSIDERAR ROCK AND ROLL JAMAICANO.



O som, apesar de ser muito roots, é contemporâneo, com uma pegada de música americana, a cara de Nova Iorque, sua cidade natal. Fundado em 1991, a quase instituição musical The Slackers foi influenciada por bandas seminais do gênero, como Skatalites e Upsetters, da mesma escola que Hepcat e Pietasters. Em 1996, lançaram a primeira bolacha, o Better Late Than Never, pela lendária Moon Ska Records, inauguraram o cast da Hellcat Records, gravadora de Tim Armstrong (Rancid) e daí pra frente foram mais de 10 e fizeram ainda mais de 11 turnês pelos Estados Unidos e 9 pela Europa. Estiveram nos palcos da Warped Tour, Lowlands Festival, Pukkelpop, Montreal Jazz Festival, Bourger Festival, Deconstruction Tour, Augustboller e Streetbeat Festival. Eles dividiram noites e turnês com nomes como Rancid, Joe Strummer, Floggin Molly, Jimmy Cliff, The Beat, Pennywise, Toots & The Maytals e Lag Wagon.

No show em São Paulo foi mostrado ao público devoto, que não estava lá à toa, a razão de tanto respeito e uma qualidade musical irretocável. O vocal de gala italiano com vagabundo desencanado jamaicano de Vic Ruggiero, que toca gaita e teclado ao mesmo tempo, fez miséria com sua bela voz. Glen Pinne é um animal bestial junto ao seu trombone, o cara simplesmente soa como as trombetas do apocalipse, se estas fossem jamaicanas e cheias de suingue e sacanagem, além de cantar e fazer dancinhas pra lá de bizarras, ainda por cima tem cara de bonequinho de desenho animado, um showman nato que fala muito bem português. O rodado e renomado guitarrista Agent Jay suava em bicas, mas muito elegante fazia belas harmonias sem muito esforço. O sax Dave Hilliard é uma lenda viva, deve ter tocado numas 8 bandas de ska, como The Scowfflaws e Hepcat, e é hoje um dos melhores saxofonistas do mundo.

O baixista Marcus Geard dava peso na cozinha com seu bigode Leôncio e seu baixo tocado na vertical; já o baterista Ara Babajian completou o sexteto coeso e que prima pela perfeição. A banda fez um show de quase 2 horas, com hits como Have the Time, Watch This, Married Girl, I Still Love You, How It Fells, Sarah, Walking On, Keep It Sample, The Same Everyday e algumas do disco novo The Great Rock Steady Swindle, como Because. Muito simpáticos, conversaram com o público, tiraram fotos antes e depois do show com fãs. Acessíveis e carismáticos, em cima do palco a energia pairava no ar, todos com sorriso no rosto, pulando, cantando e dançando ─ banda e público. Impressionou ver e ouvir a qualidade da banda, o poder dos metais, o vocal econômico e sagaz de Vic, além de como ele brinca com a gaita e teclado, a presença forte e postura profissional no palco de uma banda que faz um som simples e com influência dos anos 50, 60, 70, porém moderno, atual, contemporâneo e altamente refinado. Foi uma apresentação inesquecível, todos dançaram e sorriram muito, de alma lavada. Até o próximo.

PÉ EMBAIXO


A Fórmula 1 deu uma lição de esportividade ao mundo. Os bólidos velozes e pilotos milionários são dominados há décadas por interesses de grandes corporações, mas este ano a competição justa roncou mais alto. Venceu o melhor piloto da temporada, Sebastian Vettel, venceu a equipe que mais respeitou a disputa limpa entre seus pilotos, a Red Bull. Por trás da mudança de cultura esportiva, está o austríaco Dietrich Mateschitz, dono da marca e da equipe. Ele decidiu manter na Fórmula 1 o espírito libertário e justo dos esportes de ação que sempre patrocinou, entre eles, é claro, o surf.

Antes da última prova do ano, o austríaco decretou: “Interferir na disputa nunca foi uma possibilidade para nós. Um segundo lugar nas circunstâncias corretas deverá ser melhor do que vencer com base em ordens e confirmações. No pior cenário, venceremos no ano que vem. Nossa filosofia se mantém a mesma: isso é um esporte e deve permanecer como um esporte”, disparou Mateschitz, para desespero dos “Dicks Vigaristas” do mundo.

Na postura do austríaco pode haver também uma jogada genial de marketing, um contraponto perfeito e vitorioso ao jogo sujo da Ferrari, que este ano voltou a mandar um de seus pilotos, o brasileiro Felipe Massa, abrir caminho para outro, o espanhol Fernando Alonso. Mas, na linha de chegada, o que importa é o resgate dos princípios perdidos do esporte.

O leitor, a esta altura, deve estar se perguntando “o que isso tem a ver com o surf?”. Sobretudo se, este ano, o campeão incontestável foi pela décima vez na história o melhor surfista de todos os tempos, Kelly Slater. Pensem em Slater fora da disputa.

Sem uma linha de chegada objetiva como na F-1, cria-se um atalho perfeito para a desigualdade no julgamento: a subjetividade. O surfista que aparece vestindo a marca mais forte e está nos melhores filmes, estrelando as melhores ondas, não tem cara de campeão? Quem vale mais? Um talento do Titanzinho ou um Coolie Kid? Como uma prancha não custa o mesmo que um carro de Fórmula 1, muita gente veste a lycra de competição.

No surf, esportividade tem um significado preciso: chances iguais para todos. Se não houver um esforço para mudar o quadro, a tendência é agravar a desigualdade, sobretudo com o investimento crescente por parte das grandes empresas que dominam o esporte.

Nessa conta, podem pintar distorções cada vez mais acentuadas de avaliação e sobrar decisões pouco esportivas.

O surf engatinha como business, mas pode aprender desde já que esporte é esporte. E ponto. Eu mesmo caí outro dia na vala comum da distorção provocada pela subjetividade. Preferi a estratégia à esportividade.

Logo após o término da etapa, defendi Adriano de Souza ─ que coincidentemente é um atleta da mesma equipe do austríaco que defendeu o jogo livre entre seus pilotos na F-1 ─ por uma suposta (e não confirmada) aliviada na bateria que deu o décimo título mundial a Kelly Slater. Na bateria anterior, Adriano cometera interferência no americano.

Até aí, nada. Mas, ao sair da água, Slater disparou grosserias públicas contra o brasileiro, deixando-o numa posição desconfortável na bateria seguinte. Escrevi que talvez Adriano tenha agido corretamente ao deixar seu rival solto no início da segunda disputa.

O americano, com sua influência sobre os juízes e o mercado, criou um ambiente hostil ao brasileiro. Sabia que teria boas chances de enfrentá-lo mais adiante, como aconteceu.

Com a praia inteira à espera do histórico décimo título mundial, Mineiro deve ter se visto num impasse: se esbanjasse a sua competitividade habitual, acirraria a relação com o cara que será por muito tempo o embaixador do esporte e provavelmente seria condenado dentro de seu próprio meio; se respeitasse o adversário, neutralizaria sua briga com o cara, sabendo que ele possivelmente se aposentará no fim da temporada.

Quando escrevi, tentei pensar estrategicamente, na linha “recuar agora, para avançar depois”. Mas os retornos recebidos de amigos, leitores e as declarações do austríaco Mateschitz me fizeram repensar o ponto de vista.

Sim, eu também posso mudar de opinião. Competição é pé embaixo o tempo todo, no surf ou na Fórmula 1.

Teria sido mais interessante ver um Slater revoltado com o brasileiro. E derrotado. Ninguém jamais vai saber se Mineiro simplesmente boiou ou se estava afetado pela circunstância, mas teria sido melhor ver briga.

O alívio do brasileiro é que Mineiro já provou, pela sua história, ser o surfista brigador que o país precisa para abrir caminho ao título mundial, apesar das distorções do esporte.

HÁ 300 ANOS


S
entado à mesa da cabine de comando de sua enorme embarcação, o tenente da marinha inglesa James King, da esquadra do capitão Cook, pensava na violenta viagem até Sandwich Islands, nome dado pelo famoso capitão ao arquipélago havaiano. Agora eles estavam ancorados em uma linda baía de uma das ilhas, de frente para as montanhas mais cheias de vegetação que já tinha visto. Chovia e fazia sol com uma freqüência intrigante. Algumas pequenas cachoeiras escorriam de alguns trechos bem altos das montanhas, com o branco forte cortando o verde de cima até embaixo.

O outono, naquele final de outubro de 1776, deixava os dias um pouco mais frescos. Olhando pela escotilha, ele viu, de longe, três pontinhos flutuando perto da costa. De repente, um dos pontinhos sumiu no meio da arrebentação. Pareciam nativos em cima de pequenas canoas individuais. O tenente subiu no convés, chamou dois marinheiros e colocou um bote na água. Ele queria ver aquilo, respirar um ar fresco e dar uma nadada.

Chegando perto, eles se entreolharam meio surpresos. Não eram canoas. Os nativos estavam flutuando, cada um em cima de um grande pedaço de madeira parecido com a prancha que tinham no navio e usavam para mergulhar no mar.

Veio uma série e um dos nativos ficou de joelhos e começou a remar junto com a ondulação. Para o espanto dos três, ficou em pé e desceu reto a onda em direção à areia, se equilibrando na espuma branca. O mais cabeludo dos três veio na última e maior da série. Ele parecia bem mais habilidoso e, logo que o pesado pedaço de madeira começou a deslizar, levantou ainda um pouco agachado e começou a inclinar o corpo para a direita, fazendo a prancha mudar levemente a trajetória em direção ao canal. A descida do nativo cabeludo foi meio radical. Pelo menos aos olhos dos marinheiros. Enquanto ele descia meio angulado, buscando fugir do pico mais alto da onda, ela crescia atrás dele, como se os dois movimentos contrários estivessem perfeitamente coordenados. Quando terminou a descida, a onda tinha ficado um pouco maior do que ele, mas aquela prancha enorme corria solta cortando a parede de água.

A cena era impressionante. Quando velejava a favor do vento, o tenente sempre tentava fazer com que a grande embarcação deslizasse em alto-mar, pegando carona nas grandes ondulações. Quando conseguiam, todos os envolvidos diretamente na tarefa entoavam cânticos criados por eles: “Yesss, we go fast, we’re the best... Our ship flies, under the sky!”. Mas aquilo que o cabeludo nativo estava fazendo parecia ainda mais emocionante. A onda ia quebrando harmoniosamente em direção ao canal e ele cortando a parede em cima da prancha com os braços ajudando no equilíbrio.

Quando terminou a onda, a uns 10 metros do bote dos ingleses, o nativo se ajoelhou novamente na prancha, começou a remar para fora, em direção à arrebentação, e berrou sorrindo: “Aloha, kanaka nunui moku” (“Bem-vindo, homem da grande embarcação”)! O tenente não entendeu exatamente o nativo, mas sentiu que era uma saudação e respondeu de imediato, em tom alto: “Good on you, fellow, you’re bloody good on that!”.

O cabeludo era um príncipe e se chamava Kaleakala. Seu pai, Kamehameha, era o rei da ilha e era chamado por todos de “Mua kulu kalepa”, o “primeiro a dercer ondas”. Os outros dois na água eram primos do príncipe. Os três saíram do mar ao entardecer morrendo de fome e, enquanto corriam pela a aldeia, berravam de alegria: “Keia La loa’a lual... Keia la loa’a luau!” (“Hoje tem luau... Hoje tem luau!”).

A grande festa para comemorar o nascimento de uma neta do rei já tinha começado. Dessa vez, Kalani, irmão mais velho de Kaleakala, que organizava os luaus da família real, inovara: além de um grande porco envolto em folhas de bananeira, enterrado um palmo na terra, com pedras incandescentes substituindo suas entranhas e cozinhando lentamente desde a manhã, eles teriam também um javali enorme que ele mesmo tinha caçado na base do vulcão e enterrado ao lado do porco.

O rei estava sentado sozinho, de frente para uma grande fogueira. Os três chegaram correndo, beliscando as mulheres que enfeitavam a festa com plantas e flores, e foram direto se aquecer perto da fogueira, ao lado do rei. Kamehameha tinha um carinho especial pelo filho mais novo e pelos dois sobrinhos. Eles eram os únicos da enorme família real com coragem e habilidade suficientes para deslizar sobre as ondas e lidar com as correntezas dos dias maiores. Os únicos da família e de todo o arquipélago que levavam adiante a paixão do grande rei.

Já aquecidos pela fogueira, os três falavam do mar naquela tarde, quando de repente Kaleakala pediu ao rei, que beirava os 80 anos de idade e era forte como um javali: “Makua, há’ina hana hou mo’olelo mua loa la he’e nalu” (“Pai, conta novamente a história do primeiro dia deslizando ondas”). “Ah, meu filho, já se passaram umas 800 luas (uns 66 anos). Eu era mais novo do que vocês e adorava brincar no rio que corta a nossa aldeia. Depois de dias chovendo sem parar, o rio estava alto e muito forte. Eu escorreguei na margem e fui arrastado junto com galhos de árvores, plantas, frutas... Eu sabia nadar, mas a correnteza era muito forte em direção ao mar e em pouco tempo eu já estava longe da aldeia. Eu tentava me manter acima d’água quando vi, flutuando perto de mim, o que parecia ser um pedaço de parede de uma de nossas casas, feito de folhas secas de coqueiro com galhos finos de árvores amarrados por cipó. Pulei em cima e, como flutuavam bem, fiquei ali alguns segundos recuperando o meu fôlego, quando vi o rio chegando no mar. A visão que tive me apavorou”.

Nessa hora, os três já tinham até esquecido a fome. O rei continuou: “O mar estava gigante. Eu brincava muito na nossa praia, mas nunca tinha visto as espumas fortes daquele jeito. Por instinto, fui virando meu flutuador de costas para o mar e comecei a bater os pés e a remar com os braços contra a correnteza. Na boca do rio, perto do encontro com o mar, uma seqüência de ondas que não saíam do lugar ajudou a frear o meu flutuador, mas ele imbicou e afundei um pouco para trás do flutuador e a frente saiu da água. A última onda da seqüência me segurou e eu comecei a deslizar com ela, vendo a água passar com força embaixo de mim, sem sair do lugar. Entendi que tinha que me manter equilibrado para não perder a onda e ser arrastado. A margem estava a uns 10 metros de distância. Novamente por instinto, afundei um pouco mais a perna esquerda na água e o meu flutuador foi cortando a onda para a esquerda. Quando cheguei ao lado da margem, me ajoelhei, fiquei em pé me equilibrando por um instante e me joguei, agarrando na areia fofa da praia. De pé, acompanhei o meu flutuador fugindo para o mar, enquanto eu lembrava aquele rápido momento deslizando a onda do rio de pé no meu flutuador”.

Os três nem respiravam. “Duas luas depois, com o meu primo mais velho, pensando no flutuador e nas nossas canoas, talhamos dois troncos três vezes o nosso tamanho para deslizar nas espumas da nossa praia. Mas o meu primo tinha um pouco de medo do mar e nem tentou. Três luas depois eu fiquei em pé, deslizando uma espuma até a areia. Foi a melhor sensação da minha juventude. Melhor do que caçar javali. Como eu era o príncipe herdeiro, alguns da aldeia vinham me ver deslizar ondas, mas ninguém admitia tentar, achando que seria uma atividade exclusiva da família real. Deslizei ondas sozinho por mais de 500 luas, até que você nasceu e, em menos de 60 luas, eu finalmente tinha alguém para deslizar ondas junto comigo. Seus primos vieram depois. Agora já somos quatro, em todo o nosso reino”.

Naquele momento, James King jantava com seus imediatos na sua cabine, bebendo um dos melhores vinhos que tinha a bordo. Ele não conseguia parar de pensar no que tinha visto naquela tarde. Se estivesse ouvindo a história do rei e feito as contas no seu calendário cristão, saberia o ano em que alguém deslizou uma onda em pé pela primeira vez: 1710. Para nós, hoje, foi há exatos 300 anos.