TORTURA


Quem pensa que o surfista que mora em frente à praia pode surfar todo dia, a qualquer momento, naquela hora especial, pode tirar o cavalinho da chuva, porque a realidade é bem diferente.

Moro de cara para a areia do Meio da Barra, no Rio de Janeiro, tenho uma vista e tanto de quase 6 quilômetros de ondas, sinto o vento da minha varanda e tenho surfado pouquíssimo ultimamente. O motivo? Oras, infelizmente estar na água não me dá o maldito (ou bendito) fruto para pôr comida em minha mesa.

São inúmeros os motivos que fazem esse desencontro. O primeiro, com certeza, é a qualidade das ondas brasileiras. Se na previsão meteoro lógica o mar estiver com pinta de que vai amanhecer clássico dá até pra pensar na possibilidade de acordar às 5 da matina, mesmo no frio do inverno, e ir surfar, contando certamente com a bronca da mulher, que vai falar um monte porque a acordou cedo com o maior barulho. Mas como aqui na terrinha isso é uma raridade, pois conciliar vento, swell, maré, fundo e altura corretas é como acertar na loteria, o provável mesmo é que você durma até as 7 e comece a sua rotina diária para sair rumo ao trabalho, pelo menos sem tomar esporro.

Outro motivo que desanima é o chato vento que teima em soprar com mais força após as 10 horas. Porque, se o vento ficasse calmo, daria até para pensar em não almoçar e tentar surfar umas quatro ondas em 30 minutos, tempo estimado para tomar um banho a jato e voltar pro
trampo, caso ele seja perto de sua casa (o que é ideal se você for surfista, pois morar em frente à praia e trabalhar nos cafundéis de Judas vai praticamente zerar as chances de uma queda). Perde-se uma refeição, mas como a balança deve estar acusando alguns quilos a mais devido à falta de exercício, a dieta em prol desta boa causa acaba ajudando no contexto geral.

Caso a sorte (diga-se de passagem, de alguns) apareça e as condições fiquem ideais, existe outro empecilho, o crowd. É impressionante como quando você está com pouco tempo disponível para surfar, simplesmente as ondas te esquecem. Aquele moleque vagabundo, bronzeado, com o cabelo claro de tanto sol, que fica na praia até as 3 da tarde, pega uma atrás da outra, sem esforço, enquanto você que tá cheio de pressa e no pico ou não consegue entrar na onda por causa
da remada atrasada e vira bóia ou cai da prancha naquela da série que o mesmo moleque te liberou porque sua cara de choro está muito evidente.

Pior ainda é quando a reunião marcada há tantos dias cai justamente naquela fase em que o centro de alta pressão tropical está para ser empurrado pela frente fria, ocasionando assim o terral que todos surfistas sonham, e as ondas verdes, com cerca de 4 pés, estão ali, como uma gostosa fazendo streap tease, querendo ser tocada e você, cheio de desejo, não pode satisfazer tanta sedução, já que o negócio que vai te ajudar a pagar mais um mês de despesas não pode ser adiado.

Sobra o final de tarde, geralmente o ponto de encontro daqueles trabalhadores que por algum nobre destino conseguem chegar às 5 e meia na praia, poucos minutos antes de o sol se pôr, e brigar com o moleque que ficou até as 3, fez um lanchinho, tirou uma soneca e voltou cheio de disposição, pelas últimas ondas visíveis. Os mais tarados ficam até a Lua surgir no horizonte, porque ficar em pé, mesmo sem ver nada, já vale alguma coisa (bendito o horário de verão, que aumenta as chances de surfar mais umas três ondas).

Imagine o surfista que tem filhos pequenos. Este pode dar adeus ao surf. Além do trabalho, esse atarefado ser ainda tem, com absoluta razão, que ajudar sua esposa com os rebentos. Se os moleques forem pra escola cedo, a queda na madrugada então vai pro saco.

Espere, será então que trabalhar não vale a pena? Se for possível juntar a grana e convencer a mulher de que sua vida vai ruir caso você não faça a surf trip anual nas férias, cada hora que deixou de surfar em frente de casa pode ser reconquistada nas ondas perfeitas que desfrutará naquele pico exótico que estampa as revistas de surf. Bem verdade que essas ondas que aparecem nas fotos não quebram sempre, mas no geral, só a emoção de ver, mesmo uma marola mexida, e poder surfá-la sem nada te impedindo já serve pra agüentar outros 11 meses de angústia, sempre vendo o que não pode tocar.



Moral da história: você, garoto ou sortudo que ainda não precisa ralar, aproveite o quanto pode, porque o tempo é cruel. O mar tá ruim? Dane-se, vá surfar! Acha que amanhã vai estar melhor... Errado, vá agora! Não desperdice seu valioso tempo de praia, porque a sopa vai acabar! E quando chegar a sua hora, o que valerá são as lembranças dos dias de vagabundo.