SURFISTA SALVA-VIDAS


N
o começo do surf aqui no Brasil, quando ainda não tinha sido inventada a cordinha, os surfistas não eram muito bem-vistos pelos banhistas, isso porque volta e meia vinha do fundo uma prancha perdida pra rachar a cabeça de alguém. Isso era comum, bem comum. Quando perdíamos a prancha e a praia estava cheia, logo vinha nossa torcida para que ela não acertasse um crânio. E a coisa ficava feia mesmo quando ela acertava uma criança. Aí, meu chapa, aí ferrava. O pai, com toda razão, vinha enfurecido feito um touro. Normalmente, enquanto o sujeito te esperava vir do fundo, ele tentava quebrar a prancha em cima do joelho, e aí era o pai da criança contra o “pai” da prancha. Pancadaria das boas, salva-vidas entrando no rolo, apito, mulherada gritanto.

Dependendo da relação de tamanho entre o surfista e o banhista, o surfista nadava um bocado pra sair do mar longe da prancha, para depois, disfarçadamente, tentar pegá-la e meter sebo nas canelas praia afora.

Numa melhor hipótese, o banhista via a prancha vindo e, solícito, tentava pegá-la. Só que não tinha a mínima previsão de como a prancha se comportaria com o movimento da onda que a levava, daí que o tonto ia pegá-la daqui, ela reagia dali, e voava no nariz dele. E lembre-se que as pranchas eram bem maiores e pesadas que as de hoje. Chato pacas pedir desculpa.

O resultado dessas encrencas? Nas praias mais freqüentadas pelos banhistas ─ tipo a de Pitangueiras, no Guarujá ─ os salva-vidas nos proibiam de surfar em vários pontos da praia. Imagine isso! A onda quebrando e alguém te proibindo de pegá-la! Pra caramba que eu não ia lá! E aí o salva-vidas vinha nadando e nos dava um ralo dos bons. Discussão. Chato pacas.

Mas aí a coisa foi mudando. Os surfistas começaram a salvar vidas.

Muitos nem se apercebem disso, mas nós, surfistas, já salvamos muita gente que se afogaria. A maioria dos surfistas já tirou alguém da água. Eu, por exemplo, já tirei um monte, e disso muito me orgulho. Lembro que certa vez em Cambury, lá por meados dos anos 70, surfando sozinho em um mar de um metro no canto esquerdo, vi duas cabecinhas beirando as pedras. Dois sujeitos pegos pela correnteza iam à toda para o fundo. É muito comum formar correnteza beirando as pedras, e delas nós surfistas nos utilizamos para varar rápido e sem tomar onda na cabeça, mas elas são um perigo danado para os banhistas. E esses dois iam feito uma bala. Remei feito doido e consegui dar-lhes minha prancha, na época uma Johnny Rice azul e branca, swallow, 7’.

Mantive certa distância dos caras, para que não me agarrassem ─ que é a primeira e forte reação do afogado ─, e me imaginei na situação deles. Concluí que a melhor coisa a dizer-lhes é que agora eles não morriam mais. Que tivessem paciência, que respirassem e descansassem, que a gente sairia dali na boa. E foi assim. Após sossegarem, puxei-os de lado, para fora da correnteza, mandei que se agarrassem firme à prancha e fomos devagar até a praia. Já na praia, sentados, me disseram que recém haviam chegado de outro Estado e trabalhavam como pedreiros numa obra.

Me agradeceram muito e se ofereceram para fazer tudo o que eu lhes pedisse. Eu disse que não, que nada, que estava é contente por tê-los tirado dessa fria. Mas eles insistiram e, sérios, me perguntaram se eu estava “a fins de apagar algum sujeito”, eliminar algum desafeto. Ao ouvir essa oferta, assustei, mas confesso que logo comecei a pensar melhor no assunto. Seria só apontar um infeliz e falar “isca” que, pronto, os dois voariam na sua garganta feito lobos. Pensei, revirei, caraminholei, mas naquele momento não imaginei ninguém pra dar um fim, portanto, naquele dia salvei foi três vidas, em vez de duas. Esses dois, hoje, estariam mortos, pois não havia mais ninguém à vista. Não fui herói, não, pois me arrisquei muito pouco. O herói aqui é a figura do surfista, entendam bem, a figura do sujeito que, literalmente, leva a tábua da salvação.

Além dos dois potenciais matadores, tirei outras dezenas dessa encrenca ─ sempre tomando muito cuidado, porque é fácil perder o controle da situação. Com o desespero não se brinca.

Uma vez, surfando na praia de Pitangueiras, vi um banhista em maus bocados. Remei rápido em sua direção, porém, segundos antes, nele chegou o salva-vidas. O sujeito em apuros, forte, agarrou o salva-vidas que, sabiamente tomou ar e logo afundou, escapou por baixo, porque afundar era a última coisa que o afogado queria. E nessas, o que primeiro emergiu foi o pé-de-pato do salva-vidas, e foi uma pé-de-patada com tudo na cara do sujeito, que foi a nocaute. O salva-vidas deu-lhe uma gravata e começou a levá-lo tranqüilamente para a praia. Falei rindo: “Nossa! Pqp!”, ao que ele me respondeu: “Tem que ser assim, senão é os dois que morrem”. Nessas aprendi que mergulhar é o jeito de escapar desse abraço da morte. Eu estava com a minha Robert August branca, round tail, 7’.

Uma vez vi um loirinho tentando tirar um moreninho da água, eles estavam num buraco e a correnteza os levava. Remei pra lá, mas foi só ao chegar perto que notei que em vez de um loirinho, eram, sim, dois loirinho, porque o moreninho, para se safar, ia afundando-os alternadamente. Chegava a empurrá-los para baixo e lhes pisava nas costas. Dei-lhes a prancha e fui tirando-os. Os loirinhos estavam em piores condições que o moreninho. Nessas vim saber que os três eram amigos, que o moreninho não sabia nadar e os outros dois, que sabiam, acharam que, juntos, o tirariam dali. Como vêem, não tiraram, e por pouco não morreram. Eu estava com a minha Hobie azul, swallow, 6’8”.

Mas a pior barra que passei foi em Cambury, em meados da década de 70. Eu havia almoçado um grude medonho no meu barraco e logo voltara para a praia. O mar estava lindo, grandaço, com dois metrões bem servidos vento contra, e eu queria fazer a digestão da gororoba indigerível olhando o mar, para depois ir para o canto esquerdo pegar as esquerdonas longas que começavam a quebrar pra fora da ponta do ilhote. O plano foi atrapalhado logo ao pisar na praia, mais para o canto direito. Vi dois sujeitos lá no fundão, na linha da arrebentação, e na certa eles se afogavam. Fazer o quê? Naquele tempo, acho que nenhum salva-vidas tinha pisado ali. Era eu e mais ninguém, fora a minha Dick Brewer verde e branca, pin, uma gun 7’6”. Pulei na água e varei a arrebentação dando tudo o que tinha, pois o tempo contava. Quando cheguei a eles, vi que estavam nas últimas. Aí lhes disse a célebre frase: “Sosseguem, que agora vocês não morrem mais!”, mas dessa vez eu não estava tão convicto, um super-homem de merda. Estavam engasgados, com os olhos roxos e praticamente sem forças.

Bom, o jeito foi levá-los ainda mais pra fora, pra trás da arrebentação, para que pudessem recuperar o fôlego. Conseguimos. Descansaram.

E aí? Como eu não tinha leash, o que me garantia que conseguiríamos voltar para a praia sem perder a prancha nas inevitáveis pancadas daqueles ondões? Os dois caras eram grandes, um até era gordão, e já estavam com a respiração boa. O jeito foi falar-lhes que iríamos juntos para o raso, que eu os puxaria pela quilha e eles que ajudassem batendo as pernas, mas que uma certa hora as ondas nos quebrariam em cima e, nessa hora, que se agarrassem à prancha como às suas vidas, que não a largassem de modo algum, acontecesse o que acontecesse.

Sabe quando eles largaram a minha Brewer?

Quando seus joelhos encostaram na areia, mesmo assim precisou eu chegar e falar rindo que já estava tudo bem.

Salve a Dick Brewer! Quem os salvou foi ela. Eu só a levei a eles.

Salvem todas as nossas pranchas, as antigamente também chamadas tábuas de surf, as tábuas de muitas salvações. Elas salvam o homem da fraqueza, da depressão, da futilidade, de ambientes ruins, e muitas vezes salvam da morte.

Por tanto, meu amigo, não se meta a bancar o salva-vidas sem sê-lo, porque é bem provável que você se ferre junto. Se for uma criança em apuros, claro que tudo bem, porque, além de serem fáceis de controlar, por elas, mesmo desconhecidas, a gente arrisca tudo. Se ele for adulto, e essa parada sobrou pra você, procure antes uma prancha e, seja lá de quem for, pegue-a e vá. Ninguém reclama, já fiz isso muitas vezes.

E nunca se aproxime a ponto do sujeito poder te agarrar, nunca. Hoje temos leash, então é moleza ─ é chegar e jogar a prancha para ele, e dali sair puxando-o de longe. Se ele te agarrar, já viu, tome ar e afunde bastante, que ele te solta.

Mas o ideal mesmo, meu amigo, é ter na praia um salva-vidas surfista, que nem o Rafael, que trabalha em Cambury. Nasceu e foi criado ali. Surfa desde criança, que eu lembro, e surfa lindo pra burro. E é o melhor salva-vidas que conheci na vida, pois raramente põe o pé na água. Sempre ligado, sabe prever o perigo e, antes que o banhista se meta onde não se deve, ele já está lá apitando e botando ordem na coisa.

Salve, portanto, o Rafael, e todos os salva-vidas do mundo!