MICHAEL PETERSON ─ O Gênio das Sombras

Na metade inicial dos anos 70, um jovem humilhou os melhores surfistas do mundo vencendo todos os grandes campeonatos na Austrália. “Cinco anos depois de Nat Young ser batizado como ‘The Animal’, um garoto de Coolangatta e seu surf brutal e frenético fizeram Nat parecer um coala” (Sean Doherty¹).

Brutais eram seus mil talentos e fantasmas. Shaper inovador precoce. Pioneiro-mágico a entubar por mais de 10 segundos. Tímido patológico e rebelde indomável, avesso à publicidade, multidões e fama do nascente surf pró. Usuário diário de drogas, o que destruiria sua carreira, análise apenas em parte correta. Porque ninguém desconfiava que Michael Peterson ─ a chama mais incendiária e breve da história do surf ─ enfrentava um inimigo bem mais poderoso: a loucura.


Queensland, Austrália, dezembro de 1951.
Numa noite gelada, a garçonete Joan caminha de volta para a casa da mãe, que reencontra após fazer 18 anos. Sem conhecer nada dos homens e da vida ─ passara 11 anos com as freiras, após ser abandonada pela mãe alcoólatra ─ ela não teme os três homens que se aproximam. Que vão agarrá-la.

Meses depois nasce, sem pai, o menino Michael. Pelo filho, Joan tenta criar um lar e junta os trapos com o trabalhador de bicos diversos, Sid Peterson. Com ele tem outro menino, Thomas. Mas perde logo após o parto ─ pela pobreza ou pelas surras do violento e bêbado Sid ─ duas meninas. Um dia ela cria coragem e foge do marido para o lugar de sua infância, Tweed Heads, praia vizinha a Coolangatta. Joan se mata em três empregos, mas consegue criar os meninos e as filhas que vingaram do ex-marido, Dorothy e Denice. Mais que isso, os garotos encontram uma direção ao ingressarem na nobre cultura dos surf clubes.

Aos 13 anos, Michael entra para o Surf Lifesaving Club de Greenouth. Sua impaciência e distração o tornam um péssimo salva-vidas, mas ele vira exímio nadador e bodysurfer. E, claro, inicia-se no surf no pointbreak local.

Pouco depois, os garotos de Coolangatta ─ Michael, seu irmão Thomas e os parceiros Pete Townend e Wayne Bartholomew (futuros campeões mundiais pró, em 1976 e 78) ─ buscam ondas mais desafiadoras. Tornam-se fiéis de uma onda demoníaca, Kirra. Tubaços rápidos e impiedosos. Ali o menino que nasceu sem pai torna-se rei. “Uma onda tão formidável pedia alguém cujo nome se transformasse em sinônimo desse pico, como Gerry Lopez e Miki Dora seriam sinônimos de Pipeline e Malibu. E "ninguém seria mais corajoso, extremo ou ficaria mais tempo dentro dos tubos de Kirra que Michael Peterson”, afirmou Nick Carroll².

Adolescentes pobres, sem condições de comprar uma prancha, os irmãos Peterson montam uma oficina de reparos e logo estão shapeando. O negócio prospera graças ao gênio de Michael: ele diminui drasticamente o tamanho das pranchas (para menos de 6 pés) e tem idéias simples e brilhantes como deslocar a curvatura máxima para o meio da prancha. Assim pode acelerar e frear com facilidade, “o pé da frente significa vai, o de trás, pára”.¹


1971.
Os grommets Michael, Pete e Wayne dominam um campeonato interclubes em outra onda tubular sagrada australiana, a 20 minutos de Kirra: Burleigh Heads. Os locais, homens com bagagem no Hawaii e donos de vários títulos nacionais, ficam chocados. “Michael entrava e saía de cavernas assustadoras sendo literalmente cuspido de seções impossíveis”, revelou Wayne.

Fora d’água, no entanto, algo não ia bem. “Ele me pegava cedinho para checarmos as ondas, já fumando um baseado e com o som à toda em Deep Purple ou Black Sabbath. Michael era hiperativo, eram seis da manhã e parecia viver às dez da noite de sábado”, lembra Wayne. A bizarrice só aumentava. A molecada, de dentro do carro, curtia dar tiros nas placas de trânsito. Um dia Peterson decidiu mudar o alvo. Parou na praia, pegou seu rifle e escondeu-se nas dunas como um sniper. Seu alvo? As pranchas solitárias dos surfistas que caíam. Acertou dois tiros na prancha de um conhecido, que nadava atrás de sua prancha. Sorte que o cara escapou...

Após deixar a escola, que mal freqüentava, aos 16 anos, Michael estudou fundo shape e os ídolos Nat Young e Wayne Lynch. Logo superou-os com o estilo mais agressivo, veloz, com mais manobras e Power do que qualquer um achava possível. Os braços de orangutango e mãos-pratos lhe dão uma remada infernal e Peterson ainda vira um mestre da intimidação no outside.


De 1973 a 75, ele vence todos os campeonatos da Austrália,
incluindo o mais rico evento até então, o Coca-Cola Surfabout (1974) e três triunfos seguidos (73/74/75) no mítico evento de Bell’s. bate os melhores do mundo ─ compatriotas, havaianos, americanos e sul-africanos. Já rebatizado de MP, não brilha, porém, no Hawaii, apesar de mandar bem em Pipe (Backdoor) e Sunset.

O tri em Bell’s marca o apogeu da fúria competitiva de Peterson. “Na semifinal ele pegou umas 15 ondas. 15 ondas no Bowl, em Bell’s! é uma remada de volta ao pico de 200 metros!”, lembra Wayne.

A mesma praia presenciaria, no entanto, a piora da doença que ele possuía sem saber: a esquizofrenia, nome científico para loucura. A doença somava-se à timidez enorme, que o fazia surgir na praia segundos antes das baterias e evitar premiações. Assim ocorre após esse 3º triunfo em Bell’s. Paranóico, Michael esconde-se no estacionamento acreditando que cuspiriam nele ao receber o cheque de campeão.

Em 1976, MP ainda vence a abertura do 1º circuito mundial pró, na Nova Zelândia, mas o maior surfista do planeta não dá as caras em vários campeonatos. É visto mais chapado de maconha, ácido ou heroína. “Esse cara fez os patrocinadores fugirem do surf”, acusou-o na época Shaun Tomson, o sul-africano que lutava por uma boa imagem do surf e seria campeão mundial em 77. O cabelão, bigode, roupas largadas, vício e reclusão de Peterson eram tudo o que Shaun combatia. Mas “para toda uma geração de garotos, o rebelde Peterson significou o que nenhum superstar certinho e limpo jamais iria significar”, sentenciou Nick Carroll².


O último show. Stubbies Classic, 1ª etapa do Tour mundial de 77.
Burleigh Heads bomba ondas tubulares perfeitas de 6 pés durante todo esse evento histórico, o primeiro com baterias homem × homem. Michael Peterson destrói um a um seus rivais. Bate apertado Wayne na semifinal e domina um jovem Mark Richards (futuro tetracampeão mundial de 97 a 82) na decisão. Foi sua despedia antes de ser consumido pelas drogas químicas e pelas vozes da própria mente; até conversava com elas.

O coquetel terrível explode em sua última e espetacular “bateria” em 1983. Michael dormia no carro, na margem da estrada, quando foi acordado pela sirene da policia. Assustado, pisa fundo. Só vai parar ─ 160km e 35 viaturas (em sua caça) ─ depois, em Brisbane, porque fecham uma ponte. Ao oficial que o detém conta que acabara de fugir com sucesso dos aliens. Ele é preso e depois internado em instituições diferentes, até finalmente diagnosticarem a esquizofrenia paranóica. “Assistir a Michael surfando era assistir a uma pessoa prestes a explodir em milhares de pedaços... e ele explodiu” (Phil Jarratt).

Há 25 anos, MP vive sob os cuidados de sua mãe. Os remédios domaram seus ataques, mas não tiraram as vozes de sua mente. Passa horas no quarto com o rádio ligado. Nunca o desliga, para não ouvir apenas sua própria “canção” doentia. A música do rádio o alivia, assim como uma caminhada diária e as visitas da velha e nova guarda do surf ─ Rabbit, PT, Parko, Slater e alguns outros.

Michael Peterson nunca mais surfou desde a caçada na estrada, em 1983. Nunca mais pôde se refugiar em seu verdadeiro lar, o tubo. O lugar que ele mais amava, como revelou no passado, porque “ali ninguém pode me ver”.



Referências:
(1) Surfer, agosto/09.
(2) The next wave (livro).
(3) Encyclopedia of surfing.
(4) As declarações de Wayne e Jarrat e algumas cenas são recontadas do fantástico livro "MP, the life of Michael Peterson", de Sean Doherty.