Dessa vez é diferente. Ao invés de insônia o fuso-horário deixa os olhos pesados enquanto o dia ainda não foi embora. Não vai durar mais do que cinco ou seis dias e aos poucos o corpo vai se acostumar a ficar acordado até depois da meia-noite. Enquanto isso não acontece acordo de madrugada e espero o dia clarear escrevendo ─ (“Truth Doesn’t Make a Noise” ─ White Stripes). Já é minha décima temporada aqui. Falar que parece ontem que cheguei nessa ilha pela primeira vez é muito clichê, e muito longe da verdade também. Faz tempo. Em dez anos aconteceram algumas coisas, muitas coisas talvez. Uma década se foi desde minha primeira vez aqui e ninguém pode negar que uma década é bastante tempo. Kelly Slater tinha cabelo, Dane Reynolds ainda não era o Dane Reynolds e Andy Irons ainda estava vivo. Talvez ainda não fosse o Andy Irons também. É bom lembrar do que aconteceu no passado, valorizar o que ficou pra trás e procurar entender porque e como chegamos até aqui. E apesar da anestesia aplicada por lembranças nostálgicas temos que cantar sobre nosso próprio tempo, como ouvi dizer naquele filme baseado na vida de Bob Dylan: I’m Not There. Filmezinho confuso diga-se de passagem. Mas mesmo assim é um bom conselho. É preciso valorizar o que acontece hoje, viver o nosso tempo, a nossa era.

Alguns acontecimentos recentes abriram meus olhos com urgência para esse ponto de vista. Kelly Slater dez vezes campeão do mundo e Andy Irons morto num quarto de hotel. Os dois maiores nomes da ‘minha época’ marcam mais uma vez a história, de maneiras completamente diferentes. Daqui pra frente poderei contar como foi quando um dos maiores anti-heróis do surf morreu e quando o esportista mais dominante do mundo venceu seu décimo título no nosso ‘esporte’. Isso aconteceu no meu tempo.

A notícia da morte de Andy Irons recebi no aeroporto internacional de Madrid. Estava em um trem que leva os passageiros de um terminal a outro dentro do próprio aeroporto. Em pé dentro do vagão, segurava a barra acima da minha cabeça pra me equilibrar e carregava nas costas minha mochila, mais pesada que de costume. Minha mala acabou ficando cheia demais e até um par de tênis veio parar nas minhas costas. Alejo Muniz viajava comigo e foi ele quem quebrou o silêncio de repente enquanto eu largava minha mochila no chão pra aliviar a dor nas costas. Ele olhou pra mim dizendo: “Ah, sabe quem morreu?”. Fiz ‘não’ com a cabeça já imaginando centenas de pessoas diferentes. Amigos, pessoas conhecidas, parentes de amigos. Dá sempre um frio na barriga quando alguém faz essa pergunta. “O Andy Irons, parece que foi em Dallas, num hotel. Estava com dengue”, respondeu ele. Esse não tinha passado pela minha cabeça. Claro que minha resposta foi a mesma que a sua quando recebeu essa notícia: “O quê!?!?”. Não consegui entender aquilo de imediato e aquela notícia silenciou a conversa. A idéia custou a tomar forma. De imediato parecia mentira, mas depois minha própria mente se encarregou de fazer a notícia ser levada a sério. Sabe, certas pessoas não combinam com a morte, parecem não se render a essa condição. Nossos ídolos são assim, são heróis e heróis não morrem. Por isso não conseguia deixar claro pra mim mesmo que Andy Irons não estava mais vivo. Aquele turbilhão de notícias na internet, cerimônias e homenagens em várias partes do mundo me ajudaram a realizar que uma era havia terminado. Comoção generalizada na comunidade do surf. Um dos maiores nomes da nossa geração morreu assim como viveu, como um ‘rock star’.

E nada poderia fazer um contra-ponto mais irônico com a morte de Andy Irons do que o décimo título do careca. O melhor competidor de surf de todos os tempos vencia seu décimo título poucos dias depois da morte de seu maior rival. Inacreditável. Que Kelly Slater seria dez vezes campeão muita gente acreditava, mas ninguém imaginava que seria durante uma semana tão marcante. Kelly Slater foi meu primeiro ídolo supremo no surf, lembro até hoje daquele cutback em Backdoor em que ele volta da rasgada batendo dentro da boca do tubo. Acho que é no What Now?! do Taylor Steele. E veio um título atrás do outro, recordes se quebrando ano a ano a cada vitória. E há poucas semanas em Porto Rico seu décimo título mundial. Assisti ao vivo pela televisão e simultaneamente pelo computador tudo que acontecia enquanto Kelly levava mais um caneco da ASP. Emocionado, com centenas de câmeras à sua volta transmitindo imagens para todo o mundo em tempo real, o campeão mundial mais velho da história (que também já foi o campeão mundial mais novo, em 1992, aos 20 anos) marcava o fim de uma era. O 10º título de Kelly é um marco histórico. Se ele vai parar ou continuar competindo no ano que vem, ainda não sabemos ao certo. Mas seu maior rival não vai mais estar lá. A era Kelly Slater está muito próxima do fim, quer acreditem ou não. Mas a era Kelly/Andy terminou.

Fico feliz por ter assistido e acompanhado toda a evolução do maior de todos os tempos e seu rival. Dois personagens, duas personalidades e dois dos maiores talentos já vistos em cima de uma prancha. Ter vivido no mesmo tempo desses gigantes é um privilégio. O maior de todos os tempos e o talento agressivo do ‘rock star’ que bateu o invencível durante o auge de seu reinado. Isso tudo agora é história. História que vi com meus próprios olhos.

Sentado na cama após terminar esse último parágrafo olho pela janela e o sol já brilha lá no alto, 8h02. Já ficou tarde pra Pipeline, cair lá depois das oito é sinônimo de muito crowd, muita espera no outside e pouco (nenhum) surf. Pego a bicicleta e saio pelo portão, manobro desviando de algumas árvores e em exatos três minutos estou de frente para o mar. Quase ninguém na água, direitas e esquerdas surpreendentemente longas para o padrão do North Shore. Sunset Point à oeste, V-Land ao longe para o lado leste e um pedaço de tranqüilidade bem no meio do circo, bombando paredes sólidas de seis a oito pés. Dou meia-volta pra buscar minha prancha sem pressa e com um sorriso no canto da boca.