EU SOU HAOLE


O
s antigos havaianos se preparavam pras cerimônias religiosas com rituais de profunda respiração. Mas como os colonizadores americanos e europeus, que começaram a impregnar o arquipélago, a partir do século XIX, pouco se lixavam pra algo tão profundamente importante pros nativos, os havaianos os batizaram de haoles. “ha” é respirar e “ole” é não. Haole, aquele que não respira. Com o passar do tempo, no entanto, passou a ser haole todo aquele que não fosse havaiano. E como o surf e a sua cultura original emanam das ilhas havaianas, o universo do surf incorporou a palavra haole ao seu dicionário. Hoje em dia, haole tem uma conotação negativa, é aquele que não pertence ao pico, que não é local. Seja na Paraíba ou em Uluwatu.

Os anos 70 fizeram a fama do Arpoador. Como naquela época pouca gente morava pros lados da Barra e São Conrado, o fundo do Leblon era uma merda, o píer já tinha sido desmontado, e Copacabana só dava onda no posto 5, raramente, com ondulação de leste e vento sul, coube ao Arpex ser a grande arena da cidade. Palco de diversos campeonatos importantes, como os internacionais Waimea 5000, era colocado naquelas pedras que os melhores surfistas do Rio se espremiam pra disputar a próxima série. Gente como Daniel Friedman, Cauli, Andre Pitzalis, Renan Pitanguy, Bocão, Paulo Proença, Otávio e Fábio Pacheco, Petit, Jefferson, Rosaldo, Gironso, Fernando Bittencourt, Roberto Coelho, Ismael Miranda. Eu também era dessa turma, morava pertinho, caía no pico todo dia. Comecei de isopor até chegar na fibra. Comecei no inside, mais pro final da onda, perto da escadinha, que era pra onde os mais velhos nos mandavam, até lentamente conquistar a moral de disputar a onda no pico e dropar nas melhores.

Eu era de fato um local. Mas no íntimo sempre me senti meio haole. Isso porque não achava a menor graça em passar o dia de papo encostado na mureta vendo a vida passar. Se tivesse onda em outro pico eu dava um jeito de ir pra lá. Antes mesmo de eu entender alguma coisa sobre previsão das ondas, se o mar não estivesse legal no Arpoador, pegava minha mochila com toalha e short seco, minha prancha e ia pra praia de Ipanema esticar o dedo na esperança de arrumar uma carona. Rapidinho alguém parava e lá ia eu surfar ondas diferentes em São Conrado, no Quebra Mar, na Macumba, no Canto do Recreio. Pra não dar uma de folgado, agradecia, deixava minhas coisas num trailer e na volta pegava outra carona. Não foram poucas as vezes que voltei a pé, de noite, de São Conrado porque o último carro ia pra Barra e o meu destino era Ipanema. Chegava acabado em casa, mas cabeção das boas ondas, e, sadicamente, por saber que no Arpoador ninguém surfou.

De noite eu sonhava em botar o pé na estrada. Me via surfando na África, no Hawaii, no Peru, Califórnia, Marrocos. Não queria de forma alguma ficar preso num só lugar. Ser local de um pico único me parecia muito mais uma limitação do que uma vantagem. Viajando você cresce, aprende um monte de coisa, conhece um monte de gente, fica mais interessante, surfa ondas diferentes, melhora sua performance.

Mesmo assim não existe pior xingamento pra um surfista do que haole, o que é uma estupidez. Anos de observação me levam a concluir que nada pode ser pior pra um pico de surf e pras pessoas que freqüentam a praia do que esse mesmo pico ter sido tomado pelos locais. Como esses locais costumam ser surfistas medíocres, instalam-se no topo da pirâmide maus surfistas, o que faz com que o nível do pico despenque. Sem competição não tem evolução. E se haole é aquele cara que não se prende a uma única praia, que é curioso, que ta sempre viajando, que gosta de aprender, então esse sou eu. Eu sou haole. Sou o maior dos haoles. E se haole é o oposto desses idiotas que picham as pedras da praia, furam pneu e gostam de aparecer quando no meio da tribo, eu sou mais haole do que nunca. Por isso, pense bem antes de chamar alguém de haole. Você pode estar elogiando o cara sem saber.