MARQUINHO FANHO


Mick Fanning não se chamaria Mick Fanning. Mick Fanning seria Marquinho Fanho. Um nome muito mais de acordo com sua nova personalidade porque ele não seria mais aquele bem apresentado, educado e formidável atleta que nós conhecemos como Mick Fanning. Ele também não seria mais um dos melhores surfistas do mundo. Até porque o Superbank, aquela verdadeira orgia de direitas perfeitas, também não existiria mais. Assim, ele não teria como refinar seu estilo e repertório de manobras em paredes longas e lisas. O Superbank não existiria porque a dragagem do rio Tweed teria sido um fracasso retumbante. E por isso o banco de areia mais perfeito do mundo, que iria de Snapper Rocks até Kirra, simplesmente não existiria.

Os políticos teriam inaugurado a tal obra de dragagem inúmeras vezes, e essa mesma obra seria com certeza muitas vezes superfaturada. E o prefeito, dois ou três secretários, e mais um monte de políticos estariam envolvidos até o pescoço no desvio dos recursos públicos para suas contas bancárias. Suas fotos estariam estampadas nos jornais, e o texto publicado comprovaria o esquema do “propinoduto” passo a passo. Mas, lógico, negariam tudo na maior cara de pau e nunca iriam presos. Se até o presidente e os seus “aloparados” poderiam roubar escancaradamente por que não o resto da cambada? Aliás, o presidente seria um quase analfabeto e faria besteira atrás de besteira, e mesmo assim a população o aprovaria maciçamente, pois sua conversa de botequim seria muito agradável.

Fanho pegaria umas ondinhas e morreria de ódio de malandrinho de fora, que ele chamaria de haole. Chamaria, não. Gritaria. “FORA HAOLE!!”. Seu passatempo predileto. Marquinho seria o famoso líder da gangue, e conhecido como o “local” mais marrento do pedaço. Ele se sentiria o máximo pichando as pedras e reinando sozinho na poluída praia de Esnápio. Como o governo também não se importaria com esgoto, o rio Tweed em nada se pareceria com o verdadeiro rio Tweed de águas límpidas e cristalinas, e dele jorraria merda 24 horas por dia. Mas Fanho e seus amigos nem se importariam. Reclamar por que, se o barraco deles seria bem de frente ao mar? Maior visual. Sua favela formaria um complexo com a da praia de Duranga, outro gueto violento e imundo. O resto da população, mesmo a não favelada, teoricamente mais educada, também não ligaria muito para a situação, pois teria coisas muito mais importantes para se dedicar, como Big Brother e novelas. Livros também não leriam, até porque educação não seria muito importante e as escolas estariam todas caindo aos pedaços.

E Gold Coast não seria o nome da região, mas de um luxuoso e horrível prédio com esquadrias de alumínio e vidro fumê, onde morariam o prefeito, dois jogadores de futebol, uma cantora de axé e vários empresários com fotos em coluna social. O fato de a praia em frente estar na sombra depois das duas da tarde por causa do prédio, e completamente poluída, não incomodaria ninguém.

Com certeza a Austrália, que talvez não se chamasse Austrália, teria estado na rota do tráfico de escravos. Milhões deles teriam sido “importados” da África para as fazendas para que seus senhores pudessem fingir que trabalhavam. A população também seria muito mais miscigenada do que a atual. Os caras não iriam aliviar as mulheres aborígenes de jeito nenhum. Sem falar nas lindas negras. Africana, com “aborigena”, com latino. Com certeza fariam um puta som com muita batucada.

Quiksilver e Billabong também não existiriam. Quer dizer, existiriam, mas não teriam sido criadas ali. Os surfistas empresários teriam a brilhante idéia de piratear as verdadeiras Quiksilver e Billabong, assim como Op, Town and Country, Lightning Bolt e outras. Daria muito menos trabalho. Fanho seria patrocinado por uma dessas marcas porque o big boss acharia o máximo poder surfar sem crowd no pico favela de Esnápio. Ele também seria o maior cabo eleitoral de um certo político safado que se diria representante dos surfistas, mas que só legislaria em causa própria. Em troca, o político ficaria lhe devendo alguns favores. “Tá tudo dominado”, ele pensaria sorrindo, alheio ao desastre de país que ele estaria ajudando a construir.

De brincadeira, eu fui pintando esse quadro para os australianos reunidos em volta da mesa, depois do jantar, nessa trip que fiz. Eles me olhavam atônitos tentando fazer sentido das minhas palavras. Mas era impossível. Os caras não precisam pensar em política ou economia. O governo e a população educada fazem tudo por eles. São muito mimados, mal acostumados, não compreendem um país todo feito para dar errado como o nosso. E por isso não havia jeito de entenderem a nossa bizarra realidade. Eu brincava que eles deram sorte por não ter sido colonizado pelos portugueses, que se tivessem sido, a Austrália seria uma enorme favela, como são todas as ex-colônias portuguesas ─ Angola, Moçambique e Timor. E o nosso querido Brasil, lógico.

Mas o mais engraçado foi ler recentemente a notícia de que documentos comprovam que a Austrália foi, na verdade, descoberta pelos portugueses. Isso mesmo, quase que a Austrália foi portuguesa porque os lusitanos, excelentes navegadores que eram, chegaram à costa australiana em 1522, portanto 250 anos antes do inglês Captain Cook, seu descobridor oficial. Mapearam tudo, mas acabaram não ficando. O autor da descoberta, o australiano Peter Trickett, escreveu um livro chamado “Beyond Capricorn” sobre esse episódio. Ele brincou que se os portugueses tivessem permanecido, os australianos falariam hoje português e jogariam um futebol melhor. Já eu pensei na hora que se a colonização tivesse sido mesmo portuguesa, Mick Fanning seria Marquinho Fanho e a Austrália seria o Brasil. Para tristeza dos australianos, que teriam que surfar no mar de lama diário da nossa política corrupta. Mas pelo menos no Brasil finalmente daria altas ondas. Não chega a ser um consolo, mas já é alguma coisa.