SEM SAL, MAS COM GELO


O azul do céu e do mar, calor, biquínis, praias com coqueiros... Que imagens vêm à sua cabeça ao falar de surf? Certamente não as mesmas que passam pelas dos surfistas dos Grandes Lagos nos Estados Unidos e Canadá. Eles logo pensam em frio, neve e espessas roupas de borracha. Não existem ondas em lagos, certo?

Errado. É só olhar para o nome. As tais lagoas são grandes o suficiente para gerar suas próprias ondas, por mais que isso muitas vezes signifique surfar na mesma tempestade que as criou. As ondas quebram em diversos picos diferentes, entre eles pointbreaks e beachbreaks, e de maneiras diferentes, desde meio metrinho gordo até tubos de seis pés. Os swells também são mais raros. De outubro a maio, temporada de surf por lá, pode haver até cerca de 50 dias com ondas, uns 15 deles de qualidade. Este período do ano, no entanto, corresponde ao outono e inverno no hemisfério norte, o que significa que o frio ─ intenso o suficiente para congelar a água e acabar com qualquer ondulação ─ é um dos mais importantes fatores para o surf nos lagos. A temperatura média em janeiro, auge da estação, em cidades mais ao norte como Wawa, no Canadá, pode ficar abaixo dos –15°C.

Para lidar com essa friaca, um longjohn de 6mm com gorro, luvas e botas é essencial. Muitas vezes o frio é tamanho que os surfistas não agüentam ficar mais de 45 minutos na água. Mas eles se aquecem e voltam para aproveitar ao máximo as ondas, sabendo que o próximo swell pode demorar semanas para chegar. Em outras, o frio é tanto na superfície que as partes do corpo fora d’água congelam parcialmente, enquanto tudo que está submerso se mantém “quentinho” ─ já que a água não fica mais fria que 0°C. em um dia típico com ondas (algo já não típico assim), eles caem de manha cedo, descansam, e fazem outra sessão no final da tarde ─ às 16h00 já está escuro.

A primeira pessoa a surfar naquelas águas foi um soldado da Segunda Guerra Mundial, que trouxera um longboard do Hawaii para a cidade de Grand Haven, em Michigan. Porém apenas anos mais tarde, com a exploração do surf nos Estados Unidos durante a década de 60 que o esporte realmente se tornaria mais popular nos lagos gelados. Os moradores locais perceberam o potencial que as ocasionais ondulações da região tinham e logo começaram a pegar ondas. Em 1964 foi fundada a Associação de Surf dos Grandes Lagos, também em Grand Haven. Esta seria a primeira de muitas organizações criadas ao longo dos próximos anos. Com elas surgiu uma comunidade de surfistas de água doce unida e relativamente grande, espalhada pela “terceira costa” dos Estados Unidos, com sua maior concentração na área da cidade de Chicago, costeira do Lago Michigan.

Apesar de hoje em dia já existir uma boa quantidade de praticantes nos estados que beiram os lagos, a maioria dos residentes leigos desconhece a possibilidade de surfar ali. Mesmo os locais muitas vezes não acreditam no potencial dos ventos daquelas terras para gerar ondas surfáveis, por isso o crowd praticamente não existe; se não está surfando sozinho, são alguns amigos que te fazem companhia. Bob Tema, pioneiro do surf no Lago Superior, é um exemplo disso; apenas depois de dois anos surfando e publicando imagens das ondas de Duluth, point no Lago Superior, em seu site, que ele foi trombar com outra alma viva por lá. A cena é muito local, ninguém viaja para a região somente para surfar, mesmo porque é muito difícil prever a chegada de um bom swell. Uma das poucas vezes que alguém partiu para lá com o simples objetivo de pegar ondas foi quando a revista Surfer mandou um jornalista e fotógrafo, além de dois pros, Joe Curren e Bron Huessenstam, para uma reportagem. Foi a maior exposição do surf na região, junto com o longa-metragem "Unsalted: A Great Lakes Experience", dirigido por Vince Deur, local de Grand Haven. O filme estreou em diversos festivais ao redor do mundo.

O simples tamanho dos Grandes Lagos, com todo seu potencial para gerar boas ondas, combinado com o anonimato de tudo isso são razões suficientes para entender porque os surfistas de água doce são tão aficionados pelo lugar. Não há outro pico em que você possa imaginar um local que não sabe o que é surfar no mar ou com crowd. Na gigantesca “terceira costa”, com mais de 18 mil quilômetros de extensão, o que não falta são novo picos a serem descobertos. Na próxima vez que ouvir falar de surf, portanto, não se esqueça de pensar naqueles caras que desviam de blocos de gelo entre as manobras. Quem precisa de biquínis quando se têm ondas abaixo de zero?