De molho na areia


Impressionante como os problemas do corpo parecem pequenos à dor psicológica causada ela impossibilidade de surfar. Já perdi a conta do número de vezes que vi surfistas chorando feito crianças, porque estavam intimidados, por motivos médicos, a ficar longe da água salgada.

No Tombo, há alguns anos, por conta do esgoto que saía no Bostrô, houve uma epidemia de hepatite. Imagine só, a galera desesperada quando o diagnóstico apontava para pelo menos um mês de cama. Tinha neguinho que com duas semanas largava o tratamento e preferia arriscar uma seqüela no fígado, a amargar a perda de um canto direito de gala. Sobreviveram.

Tenho um amigo que em menos de um ano conseguiu duas lesões graves. Na primeira, jogando futebol, adquiriu uns pinos no tornozelo e dois meses fora d'água. Foram intermináveis dias de queixas pelo MSN. Da segunda, surfando, conseguiu uma torção no joelho, que rendeu um enxerto no ligamento e seis meses fora da cena. Desta vez, conseguiu a solidariedade do fisioterapeuta que também é surfista e exibe um joelho "turbinado" com pinos. Ele garante que preferia morrer se tivesse que deixar de surfar. Um tanto quanto radical, mas bem próximo do sentimento que afeta os fissurados que são obrigados a fincar os pés na areia enquanto o corpo se recupera. Aliás, outro dia escutei uma definição bem engraçada: um desesperado de plantão diz ter descoberto duas coisas importantes quando teve que ficar uns meses no seco: a primeira foi que detesta praia e a segunda que os melhores mares quebram quando você não pode entrar. Faz sentido.

Surfistas realmente parecem sofrer algum tipo de metamorfose quando passam um tempo fora do mar. Sabe aquele comercial do garotão na piscina do clube, quase morrendo, que só recupera os sentidos quando os amigos o seqüestram e jogam no mar? E aí rolam tentativas desesperadas pra salgar o corpo e a alma. E dá-lhe filme, revistas, games de surf virtual. Vale tudo pra sentir-se o mais próximo possível da sensação de deslizar pelas ondas. Mas, como não há mal que sempre dure... Um dia o corpo se recupera e você percebe que toda a privação só serviu pra estimular ainda mais seu tesão e a volta é sempre triunfal com gosto de primeira vez.

Na real, esse texto surgiu no dia em que um grupo de amigos, no qual me incluo, descobriu que um dos tripulantes estava com câncer e um tipo de câncer que afeta os ossos. O susto da notícia foi minimizada pela informação de que há cura, mas quando soubemos que por conta do risco de fraturas haveria a necessidade de ficar longe no mar, a indignação foi unânime: "mas essa médica sabe das seqüelas que a falta do surf vai trazer?" Não, ela não sabe. Nem imagina. Isso é o surf!

Sabemos que em breve o nosso brother vai voltar e a galera estará lá no outside esperando pra dropar junto. A única preocupação é que esse cara é tão fominha, daqueles que pega uma e sai remando de volta feito um louco pra não perder nada, que já está todo mundo se preparando, porque a volta vai ser irada.